Editora Penalux, Guaratinguetá (SP), 2019, 142 páginas
Programação visual: Talita Almeida
Capa: Heliana Soneghet Pacheco
Fotos: Fernando Garcia
Texto da orelha: Lila Maia
Esse foi o livro mais demorado de nascer. Não em ser montado, mas em ser publicado. A poesia, na verdade, tem prioridade na minha vida. Quando Afetos e Avessos estava indo para a gráfica, no final de 2016, Fatário, meu 13º livro de poemas, pediu urgência. Atendi, lançando-o em 2017.
Três anos depois, em 2020, estava tudo programado para lançar Afetos e Avessos, meu primeiro livro de contos e por uma editora (Penalux), quando aconteceu a epidemia da Covid-19. O mundo parou. O livro dormiu, já impresso, na prateleira da sala de jantar.
Até que, em março de 2021, ele pediu para nascer de vez. Atendi. Por meio de uma live, apresentei o livro e, principalmente seus significados. Afetos e Avessos transita entre as diversas formas de relacionamento familiar, com histórias curtas sobre pais e filhos, irmãos, tios e sobrinhos, incluindo vizinhos, para abordar temas como convivência, solidão, morte, Deus, descobertas, adeuses, encontros e desencontros.
Na live, em que fui entrevistado pelo roteirista e revisor do livro Fabiano Gonçalves, foi questionada a diferença entre escrever poemas e contos, Respondi o que pude. Poesia é um gesto involuntário, como ter fome e comer, não havendo como impedi-la de nascer. Já conto é um processo de construção, que requer pausas e respeito ao silêncio. Lembro que ao escrever meus primeiros contos sentia muita culpa pela morte dos personagens, por exemplo, o que me obrigou a entender que a prosa exige, algumas vezes, distanciamento, ao contrário da poesia.
Afetos e Avessos é um panorama ficcional, mas contém lembranças pessoais que foram adaptadas para que o livro não fosse um álbum de memórias. Pelo menos, não tão às claras assim.
Acabara de chegar a visão auditiva mais desejada do dia de sair.
– Olha o tringuilim, olha o tringuilim!
Lá estava ele, elegante, dono de uma cascata de doces que, de tão doces, causavam frisson embaixo das orelhas. Frio na barriga não, embaixo das orelhas mesmo, trincando os músculos faciais laterais só de ouvir o ferro cantar na madeira para encantar as crianças. Como era poderoso aquele moço, a carregar com maestria o que havia de mais saboroso no mundo. Mas conseguiria resistir. Afinal, ao sair de casa aceitou as regras da mãe:
– Não me peça nada, por favor, não me peça nada.
Ela entendia. A mãe não podia satisfazer todos os seus desejos. Porém, o que fazer com os olhos que, fixos, não paravam de desejar o que havia de mais desejoso no mundo? Pouco importava a dificuldade de tirar o papel do doce – tê-lo às mãos, aos olhos, à boca, compensava qualquer sacrifício. Não tinha como evitar querer.
Até que o milagre aconteceu.
– Pode pegar um, sentenciou a mãe.
A alegria subiu do peito à face num só golpe, e Virgínia, naquele momento, podia se dizer a menina mais feliz da vida.
– Qual você quer?, perguntou o vendedor.
Muito difícil escolher. Apesar de serem todos iguais, deveria haver um diferente, mais açucarado ainda. Olhou, olhou e apontou para o do alto à esquerda: provavelmente o primeiro a ser embalado. Como brilhava! Como pedia para ser seu!
Com o maior desejo do mundo nas mãos, Virgínia ia lentamente saboreando o seu tesouro. Queria que custasse a acabar. Ofereceu à mãe que, com um gesto da cabeça, recusou – era todo seu, todo seu.
Pela primeira vez, não esperou a mãe tomar a decisão do carinho no passeio dominical pelo Largo do Boticário. Como forma de agradecimento e profunda prova de amor, Virgínia estendeu a mão que estava livre e alcançou, suave, o braço distraído da mãe.
– Sérgio, você vai se atrasar!
– Eu não me chamo mais Sérgio.
– Como você se chama agora?
– Frederico.
– OK, Frederico, anda logo para não chegar tarde na escola.
– Já vou, mãe.
Sérgio, Frederico, Marcelo, Ronny, Gustavo... não concordava com a lógica do mundo em se ter um nome só por toda a vida. A cada semana, às vezes no mesmo dia, as sensações mudavam de tal maneira, ficavam múltiplas, diferentes, que o nome escolhido pelos pais não fazia qualquer sentido. Definitivamente, na opinião de Sérgio, quer dizer, Frederico, não deveria haver uma lei que obrigasse as pessoas a terem um nome só. Malditas certidões de nascimento.
Teve uma ideia genial. Pediria aos pais para trocar o seu oficial Sérgio por... Nome. Seria mais amplo e poderia não se preocupar em se encaixar no que um nome comum diminuía a ponto de incomodar. Mas reconheceu que, depois de um tempo, Nome também poderia acabar não significando a particularidade de um determinado momento. Não sabia o que fazer.
– Mãe, você tem uma sugestão para a minha necessidade de não ter um nome só?
– Não tem saída, filho. O mundo é assim. Tem coisas que por mais que a gente lute não mudam. Hoje, aos 12 anos, isso o chateia, eu entendo, mas daqui a pouquíssimo tempo você vai achar bom ter um nome só. Já pensou quando começar a namorar firme? Nem a moça nem os pais dela vão entender que o namorado um dia se chama Carlos, no outro Eduardo. Lamento, não tenho uma solução. Você é Sérgio.
Temporariamente vencido, esperaria chegar aos 18 anos para tomar uma decisão. Até lá, acataria Sérgio. Argh! Mas foi bom o papo com a mãe. Quem sabe, lá na frente, ele não se convenceria de que ter um nome só fosse mesmo mais útil e adequado para não ter maiores problemas? Difícil crer. Porém, desde agora, prestaria bastante atenção nas respostas das pretendentes a futuras namoradas. Só daria continuidade se, em meio a conversas corriqueiras, ao introduzir o assunto como quem não quer nada – “Eu tenho um primo que diz que...” – a menina achasse natural alguém querer ter todos os nomes do mundo. E que, em segredo de casal, topasse ser chamada um dia de Sônia, outro de Isabel. Roberta, a mais linda da rua, também parecia Julieta.
Esconde frutas no casaco. Velho maluco, dizem. Com seu paletó cinza bem passado mas com cheiro de naftalina, é conhecido dos empregados do supermercado, que, sem saber por quê, com ele simpatizam e acobertam seus furtos diários.
Antes de pegar as frutas, limpa-as com muito cuidado, como se cada uma merecesse a delicadeza de um carinho antes de ir parar nos bolsos. Não faz nada escondido e não parece sofrer de distúrbios mentais: simplesmente pega as frutas que parecem mais maduras e suculentas. Na saída do supermercado, segue sempre para o apartamento de um quarto, uma sala e um retrato pendurado à entrada.
A filha, que há dois anos perdera para o mar, preferia maçãs.
Nerelda era o terror das tias. Quando sem avisar, vez ou outra na vida, aparecia no almoço dos domingos, os tios e os maridos das tias ficavam num alvoroço só.
Nerelda era morena clara, corpo escultural, rosto nem tanto, mansa, muito alta e dona de uma palavra que Vicente descobrira com ela: sensual.
Nerelda tratava a todos com simpatia: doses certas de educação com doses ousadas de sensualidade. Tratava Vicente como o neto e o sobrinho mais velho da família, que aos poucos se tornava um rapazinho.
Nerelda, a cada visita inesperada para as tias e aguardadíssima pelos tios e maridos das tias, se assustava com o tamanho de Vicente: você está ficando um homem!, mas ainda o abraçava como se embala um bebê.
Nerelda era nitidamente rejeitada pelas tias: vulgar, piranha, puta, por isso o noivado não durou nada. Menos de um ano. Os tios e os maridos das tias diziam que o ex-noivo é que não era de nada. Uma morena assim não se deixa escapar, falavam longe dos ouvidos femininos. Sonhavam em ter uma chance.
Nerelda poderia escolher um e se vingar dos maus-tratos das mulheres daquela família que ela adotou como sua logo que a mãe morreu. Mas não. Mantinha-se apenas sensual, espalhando sonhos e rastros de um perfume cujo nome não revelava a ninguém. O segredo era a alma do seu negócio.
Nerelda, num dos almoços, olhou demoradamente para Vicente e perguntou: você já fez amor? Ele avermelhou o rosto e, antes de responder, foi interceptado pela avó. Nerelda, isso é coisa que se fale? Francamente. E trocaram de assunto.
Nerelda, depois daquele dia, nunca mais foi vista. Nem um telefonema nos natais. Vicente ainda espera reencontrá-la para dar a resposta: aguardo o seu convite para conhecer o amor. Até lá, vem aprendendo a beber cerveja e a observar o que precisa ser observado nas mulheres, segundo as leis dos tios e maridos das tias. E, como eles, torce para a campainha dominical tocar e ser o escolhido de Nerelda. Mas, ao contrário de todos os outros, ele lhe faria a corte.
Nerelda não sabe, mas é moça para casar.
– Ele fez um puta negócio.
Não houve silêncio ou repreensão. Como assim? Desde quando palavrão estava liberado naquela casa? E os tapas na boca que levou a via toda?
Olhou para a mãe, para o pai, e nada. Tudo tratado como se permitido fosse soltar um puta qualquer. E não foi só uma vez.
O tio, visita esporádica, volta e meia colocava um puta antes de sucesso, lucro – sempre palavras positivas. Seria essa a senha? Associar o palavrão a algo bom? Não fazia muito sentido.
Para completar, o tio se despediu com “foi um puta prazer”. Aí já era demais, não? Prazer não era palavrão, mas quase. Ou algo havia mudado naquela família e ninguém o avisara?
Deixou a porta fechar e disparou:
– Fiquei puta feliz com a visita do tio.
– Olha a boca suja, menino! Quer levar uma surra?
– Mas o tio falou sete vezes puta em menos de meia hora e vocês não disseram nada!
– Seu tio é paulista. Esse é o jeito que paulista fala. E fim de papo. Vá tomar banho para se deitar.
Naquela noite, além do banho tomou uma decisão importante. Se um dia fosse pai, todos os seus filhos nasceriam em São Paulo.