Rio de Janeiro, 2023
110 páginas, 133 poemas
Encarte
Programação visual: Heliana Soneghet Pacheco
Fotos: Fernando Garcia e Anna Agonigi
Gráfica: Reproarte
Após a incursão no mundo dos contos, com Afetos e Avessos (2019), precisei voltar ao ninho da poesia, com Íntima travessia. Esse livro confirma a minha tradição de escritor independente e artesanal que marca a minha carreira literária como poeta. Eu e a designer Heliana Pacheco, que assina a programação visual de todos os meus livros de poemas, estávamos com saudades de passar noites colando e chamuscando papéis para ratificar em imagens o que o lirismo dos textos às vezes pedem.
Íntima travessia é a minha busca pela intimidade com o leitor: até que ponto está disposto a mergulhar no abismo comigo para encontrar alguma esperança de céu?
Dividido em três partes – todas chamadas “Durante é tempo demais para esquecer” –, Íntima travessia traz poemas de amor, cunho político-social e existencial. No primeiro capítulo, destaque para os textos que tratam do auge e do declínio do desejo nas relações amorosas. No segundo, poemas que marcam a posição política do escritor contrária ao governo federal (2018-2022) e que também falam de refugiados e da luta contra a homofobia. Na terceira parte, poemas existenciais que retratam, entre outras questões, a perda da memória, um tema que me aflige e ao mesmo tempo inspira, já que considero pura poesia a dedicação das pessoas que cuidam daquelas que vão perdendo a capacidade de lembrar a própria história.
No livro, encontra-se, ainda, um encarte que leva o subtítulo do livro (“Poemas inconfessáveis”) e narra, em forma de versos, a história amorosa de duas mulheres do ponto de vista de uma delas, com final bastante revelador. Para marcar bem essa história e dar a dramaticidade necessária, chamuscamos a ponta de todas as páginas do livreto.
Nunca irei te esquecer.
Não por vaidades ou vazios.
Mas para quando,
na minha última velhice,
me perguntarem o que foi a vida
eu poder sorrir sem precisar explicar
que foste mais meu que do tempo.
- Será uma rosa. - Será um lírio.
A flor nem se sabe flor.
- Azul para meninos - Rosa para meninas.
O bom desejo, nefastos, é daltônico.
Ontem ou anteontem
a velhice revelou-se plena.
Um menino me perguntou:
o senhor tem netos?
Tirei do bolso duas rosas.
Uma plantei no ventre
da juventude morta.
A outra entreguei ao menino.
Entre os amores reais
e os amores impossíveis
há o risco inevitável
dos amores inesquecíveis.
Porque um dia te conheci.
Saberei perder Paris
a torre e seus 1.710 degraus
o frio inspirado nas pontes
as mãos felizes nos bolsos
a sopa quente de cebola.
Saberei perder Barcelona
a família e seus 172 metros
a tontura nas curvas de Güell
as estátuas vivas nas Ramblas
a fome saciada pela beleza.
Saberei perder a memória
o passaporte e seus 12 carimbos
a fotografia pálida a se esvair
as épocas imprecisas dos destinos
a confusão entre viver e inventar.
Aceitarei as condições impostas:
o tempo apaga fatos e compensações.
Restará o futuro quase consolador
a prometer novas pequenas recordações
a serem também brevemente perdidas.
Só não saberei perder a lucidez
de que a eternidade possui local e data:
Rio de Janeiro, 16 de junho, ano de 2004.
Disso terei que me lembrar
disso terei que me lembrar.
Para não esquecer nosso encontro
para não esquecer nosso encontro
todos os dias, ao acordar, repito
alisar a pele da manhã e cuidadosamente,
mais uma vez, nela anotar o teu nome.