Rio de Janeiro, 2014, 174 páginas
Programação visual: Heliana Soneghet Pacheco
Fotos: Fernando Garcia
Gráfica: Reproarte
Talvez alguns estranhem a frase “Cartas ao grande amor é meu livro mais íntimo”, retrucando “Todos os seus livros são íntimos!”. É verdade, mas Cartas possui uma intimidade diferente, já que além de poemas traz memórias poéticas. Essas memórias, transcritas em prosa, acabaram exigindo que os poemas escolhidos tivessem essa característica caseira, de intimidade. São histórias minhas que, certamente, foram também vividas por muitas pessoas.
O livro nasceu da minha descoberta de estar, já alguns anos (acho que de 2005 a 2013), escrevendo prosas poéticas que mais pareciam cartas, cartas que mais pareciam memórias. Pensei: ih, acho que é um livro. Era. E passei a tentar registrar todas as lembranças que vivi de tempos extraordinariamente amorosos, das grandes secas sentimentais, do equilíbrio que um dia chega.
Cartas é dividido em 5 “endereços”: Largo dos Primeiros Suspiros, que traduz o frio na barriga, as dúvidas, as ansiedades dos amores e desejos iniciais; Rua dos Bons Encontros, com relatos dos amores vividos com saúde e alegria; Praça dos Definitivos Adeuses, com textos mais voltados à experiência da dor, da saudade e da espera; Ladeira das Vinganças, conjunto de poemas e prosas poéticas “de resposta” ou voltadas ao humor; e Avenida das Sabedorias, quando o tempo ensina a guardar apenas o lado positivo dos amores.
Outra declaração que pode causar estranheza a quem acompanha a minha trajetória poética: Cartas ao grande amor, de algum forma, lembra a essência do meu primeiro livro, Entre dois invernos, que tinha na liberdade a sua principal promessa. Minha maneira de escrever, hoje, é bem diferente da de 25 anos atrás, mas acho que a essência que me faz continuar vivendo na poesia ainda é a mesma.
A concepção gráfica do livro nasceu da minha paixão por azulejos, em especial os portugueses, que trazem a sensação de casa, intimidade, encontro. Numa loja de rua, em Barcelona, vi as letras do alfabeto em forma de azulejos e na hora decidi: é essa a capa do livro. Liguei para a Heliana Soneghet Pacheco, designer de todos os meus livros, e perguntei o que ela achava. Ela aprovou a ideia e os azulejos passaram a ser o tema visual do Cartas. Em seguida, tivemos a ideia de fazer dos azulejos selos para ilustrar os 5 “endereços”.
O lançamento aconteceu na Livraria Mini Book Store, no Museu da República, no Catete, no dia 11 de outubro de 2014.
Uma de minhas primeiras e mais verdadeiras dores foi descobrir que uma pessoa podia ter mais de uma casadurante a vida. É inesquecível a tristeza das mãos de meu pai, em nossa primeira partida, arrumandoo que restava da família em caixas de papelão, nasquais o silêncio ajudava a acomodar as lembrançasúteis. O certo não seria nascer e permanecernum só lugar? Não, às vezes é preciso mudar. E obarulho da fita lacrando o pouco a ser carregadome ensinou que pertencer é um sentimento amplodemais para se confiar a eternidade de alguns segredos às paredes de um quarto.
Possivelmente essa descoberta tenha sido a minha porta de entrada no universo daspalavras que, entre o grito e o sussurro, traziam asensação de conforto. Uma xícara de café com leitequente para consolar o frio de não compreenderabandonos. As palavras se mostravam confiáveis:ficavam nos cadernos e, embora aceitassem rabiscos,não renegavam o lar oferecido. Foram elas que meapresentaram à poesia, que nada garante, somenteacolhe - até as próprias palavras, quando em seureino não sabem se para elas haverá amanhã.
A poesia chegou, ou eu cheguei a ela, já não me recordo, numa tarde amena em que o pensamentopareceu ter sofrido um desmaio bom, ter aceitouma contradança inesperada masritmada pelo batuque pequeno do coração. Umaescola de samba atravessou a avenida do peito deum menino avesso a grandes conquistas. Quandovoltei a mim, ainda um pouco tonto, ainda um pouco passista, pouco entendi, porém percebi emminhas mãos o troféu de tijolos macios eargamassa fresca. Naquele dia, independentementede pai e mãe, resolvi fixar moradia na poesia econstruir, sem dar conta exata do que fazia, a casa definitiva e sem chances de demolição dos meusfuturos amores.
Foi a poesia que me disse: não é feio amar. Eu achava de muito mau gosto o amor entre duaspessoas, um gesto equivocado, um incômodo desnecessário, um empecilho diante da grandezada vida. Tanta a coisa a fazer, a revelar, a viajar evolta e meia lá estava um casal em plena rua a jurar eterno o que soava tão frágil. Odiava ir acasamentos e ter queacompanhar uma cerimôniaquase tão açucarada quanto o mel que eu nãosuportava tomar para evitar resfriados. Até queno casamento de um vizinho – como vizinhogostava de casar! – ouvi o padre afirmar que as alianças eram de ouro porque resistia ao fogo e,assim sendo, o amor verdadeiro saberia vencerqualquer barreira. Ainda hoje poderia repetir a expressão de enfado quase adolescente do meurosto ao escutar a sua fala, à frente de noivos maisnervosos que emocionados. Mas naquela noite, deitado em minha cama, em que o sono fugira,possivelmente no bagageiro do carro dos noivos –latas penduradas anunciando recém-casados era muito cafona! –, as palavras do padre não saíam deminha cabeça e ouvi com total clareza a poesia virde mansinho me dizer: não é feio amar.
Mesmo sem ter amores, não tive outro jeito a não ser seguir as ordens de quem me deuum lar e passei a escrever poemas para o amorque, quisesse eu ou não, um dia chegaria. Talvezgostasse de saber que com ele, de alguma forma,há tempos, eu já me importava. Na verdade, haviauma penumbra desconhecida que vez por outrapovoava meu sono e para ela comecei a dedicarversos, melosos, mas sinceros. O tal dia chegou e foi bom ter poemas para saudá-la e para admitir,entre encontros e despedidas, que a poesia estásempre certa (em suas escrituras que em nadalembram as leis humanas). Seu tempo é outro,não pode ser medido em instantes ou pausas; sóela realmente pode falar em eternidades, enganos,promessas, desacordos. Só ela poderia, tantos anosdepois, resolver brincar de vento, se infiltrar nosbaús lacrados de meus porões e redesenhar a sortede centenas de cartas escritas que, enfim, ganhama coragem de ser enviadas.
Espero que o teu endereço, grande amor, ainda seja o mesmo.
*
Novamente aos 15, novamente me vejo diante daquele que me fez entender, em detalhes, oque a tia queria dizer com “um par de olhos azuis pode levar uma mulher à loucura”. Ele tinha nomede santo, mas sorria de forma ateia e sensual. A esposa vigiava cada passo de seu sorriso para que não chegasse inteiro ao olhar de qualquer uma das outras mulheres presentes. Mas eu estava livre do seu radare pude, durante uma tarde de janeiro, me apaixonarpara sempre. E, pelo visto, duvidar do que a tia queria dizer com “paixão é algo que não se explica”.Havia uma explicação. Um par de olhos azuis podialevar qualquer um à loucura. Falava pouco, parecendo um acordo coma vida. Se mais falasse, poderiam achar que Jesus voltara para salvar a humanidade outra vez ou que estava se candidatando a um cargo político. Mas era somente um trabalhador sem qualificações específicas,com dificuldades para fechar o mês. Eu escutava todasas conversas em que ele era o centro das atenções, nãodeixava escapar nenhuma informação. Também seus lábios tinham olhos azuis.
Eu observava o quase desespero dos maridos, que tragavam com força seus cigarros enquanto batiam os dedos nervosos nos coposde cerveja. Era clara a inveja de cada um e visívela preocupação de que aquele forasteiro decidisselevar suas esposas à loucura. Quem resistiria a umconvite para fugir em seu cavalo branco? Ainda queelas quisessem, seria impossível dizer não. E eramfrancas, em momento algum escondendo a intenção de segui-lo, caso o destino assim o propusesse. Casoele assim uma delas escolhesse. Mas eram todascolocadas em seus devidos lugares e poltronas peladona oficial daquele par de olhos azuis que, diante deum assunto mais demorado, disparava o seu chicote eferino, interrompendo diálogos e mal intencionados.
Até que Jorge (era esse o seu nome) resolveu ser, alémde belo,simpaticamente correto, dirigindo a palavraao único adolescente no recinto. – E aí, rapaz, qual o seu time?
Ele havia me escolhido para desembaraçar o silêncio que se instalara naquela sala de classe média,Leblon, que reunia familiares e amigos para umalmoço de domingo. – Sou Flamengo. E você, Jorge?
Como tive coragem de responder? Como tive coragem de fazer uma pergunta? Como tivecoragem, tão sem querer, de pronunciar o seu nome?Será que eu perdera a noção do perigo em ser mais um a despertar a ira de sua esposa? E se tivesse ditosem perceber “E você, amado Jorge”? Será que eletambém torcia pelo Flamengo? Seria um sinal de quetínhamos algo em comum? E se me convidasse parair ao Maracanã ? E se odiasse o Flamengo? Por queseus olhos eram mais impressionantes e azuis do que o necessário? Por que não me respondia logo?
Alguma de suas indiscretas pretendentes desviou de mim o olhar de Jorge, perguntando seele queria um café. Café? Numa hora daquelas, nomomento só não esperado porque jamais imaginado, alguém tinha a petulância de nos interromper paraoferecer um café? Em um segundo consegui ver todosos cafezais do planeta dizimados por uma praga terrível, que também se instalava no corpo humano,em especial no de pessoas que se ofereciam, com vozmansa, através de um café. E pior, se oferecendo em minúcias de intimidade: prefere forte? Nunca desejeitanto o desaparecimento de um ser. Mas a vingança veiode imediato, sem que eu precisasse concluir o serviço demeu instinto-assassino. A mulher de Jorge intercedeu:nem forte nem fraco, minha filha, ele só toma caféem casa. Dali em diante ficou calado, sem graça pelaresposta ríspida da esposa, e se manteve cabisbaixo, semnotar que seus olhos azuis criavam, naquele assoalho jásem sinteco, um novo mar para o mundo.
Fiquei sem saber para quem Jorge torcia, muito menos se me convidaria para assistir a um jogodo Flamengo e se por acaso tínhamos algo em comum.Exatamente às 15h50 sua mulher decretou o fim da peleja, sem a necessidade de acréscimos, frustrandotoda a plateia feminina no local, que quase suspirouem uníssono pela bola na trave. Fui agraciado por ela, na saída, com um beijinho a distância: não poderiasupor que eu estava entre suas piores ameaças.Jorge saiu de campo com um tchau coletivo, obrigado, gente, foi ótimo, causando lamúrias verbalizadas das suas novas viúvas que, longe dosmaridos mas perto dos meus ouvidos, confessavam entre si: o que são aqueles olhos azuis? Jesus!
Naquele dia, apesar de ter voltado para casa mudo dentro do carro, não, não aconteceu nada, como peito dilacerado por ter minha paixão desprezada, entendi como se iniciava uma religião, uma seita, umcredo. Não sei se Jorge era Jesus disfarçado, mais umavez ressuscitado, acho que não. Mas, desde então, espero sua volta.
Chegará em traje completo
como manda o figurino de bem-querer
ou trará rasgos no bolso esquerdo do paletó?
Usará abotoaduras, coletes e sobretudos
nas datas que se fizerem solenes
ou pedirá bainhas pelos desgastes do mal-querer?
Dormirá sem agasalhos ao meu lado?
Ele não tinha respostas prontas na mala
quando a porta se abriu.
Apenas veio com a roupa do corpo
e uma penca de sonhos pendurados
em cabides de lua minguante.
Pedi que entrasse: sem precisar tirar os sapatos.
Não acreditava em pijamas.
Tantos bordados e remendos depois
ainda hoje nos cobrimos
com o boa-noite da primeira vez
e dispensamos os chapéus
na saudação das desalinhadas intenções
aos desejos a serem novamente arrematados.
A felicidade é o vestido mais bonito do acaso.
*
Eu podia ver em sua pele , como se fosse um atlas escolar, os traços de um mapa a revelar com nitidez as imensidades de umapátria. A cada passo que dava, no acaso de umpasseio despretensioso pelo bairro, na busca pelopão e leite de todo dia, derramava sementes de abacateiros, bambuzeiros, pinheiros, ourieiros atéentão nada interessantes a meus olhos e sabores.De que primitivas tribos vinham jacarandás, xixás,camboatás, jatobás a me obrigarem a aceitar umanaturalidade cidadã? Hoje sei que os jequitibás,manacás, quem sabe os araçás ou resedás de seusgestos, me ensinaram a ser brasileiro.
Sua boca, farta de cerejeiras, palmeiras, laranjeiras, quaresmeiras, viciou meu desejo que, entre a revolução e o nacionalismo, rasgou opassaporte de andarilho e fincou a bandeira da fidelidade partidária. Como querer amar outrosoitis, buritis, muricis, cambucis, além daqueles que brotavam de suas ideias anárquicas de gozosclandestinos?Ninguém, depois do renascimento do prazernuma terra passageira mas comum a dois, seriacapaz de recusar tantas jaqueiras, erveiras, macieiras,assobieiras.
De muito observar o jeito desengonçadomas sensual de seus quadris, aprendi a sambar aos pés dos benguês, juvenês, tarumãs, guianãs e a fingirachar bonito vê-lo abraçar os companheiros comtamanha intimidade. Também aprendi que o ciúmeé capitão-do-serrado, aldrago, lapacho cuja floramanhece e anoitece fogo, e que o melhor remédiopara não se queimar é recostar nos galhos de umcedro, algodão-do-brejo, ipê-amarelo e deixar ovento passar.
Apesar das mãos pouco vividas, sabia contar personagens e proezas da história nacionalcomo poucos, me fazendo dormir entre camposde aleluias, tabebuias, imbuias, tendo quase sempre uma palavra de fé ante deus inexistente. Suacrença perambulava entre expressões faciais pouco precisas, como se duvidasse daquilo que ele própriocolhia em seu quintal. Misterioso, vasto quintalpovoado talvez por ecos de perfumes perturbadoresde acácias, viscáceas, araucárias. Ou seriamcoqueiros, castanheiros, pessegueiros altaneiros quelhe deram mais frutos que eu?
Jamais corri o risco de querer saber além do que deveria, preferindo contentar-me com a delicadeza do instante de um alecrim, angelim doque constatar a resistência desarmada de jaranas,imburanas, mutambas que provavelmente coloriramo seu passado. E do que me valeria a comparação,se paratudos, veludos, carnaúbas, baraúnas, assimcomo eu, não souberam prendê-lo às raízes?Quando deixou de ser visto pelos arredoresda capitania a cuidar de marianeiras, figueiras,louveiras, goiabeiras, restou-me o consolo denão ter sido enganado: apesar de sua brasileiravitalidade, em momento algum escondeu sertambém do mundo. Custei a acreditar que nãomais o veria, esperando feriados a fio por suavolta, com o almoço servido ao ar livre, encostadono tronco de sombreiros, cajueiros, tanheiros,abieiros.
Mas estava certo. Ficou o tempoque jambeiros, ingazeiros, faveiros, salseirosnecessitam para se tornarem inesquecíveis antes dedesaparecerem. Dele não mais tive notícias, postaisou esperança de um exílio partilhado, quandotraçaríamos planos de regresso e construção de uma família orgulhosa de seu país. Tampouco deixoupistas sobre sua inesgotável capacidade de amar umaterra que tão pouco lhe deu e nada reconheceu desua elegância patriótica. Mas por nós e pela trajetóriados casais que honram o sotaque de suas paixões,mantenho a tradição de seguir a sombra de suasoliveiras, uvalheiras, seringueiras, paineiras por todosos dias da minha saudade.
Sempre envelheci as horas em ti
Um do outro nascemos cansados
mas leves em merecer
o tempo plantado em nós.
Pela vida afora uma rosa
nos reconquista o olhar.
Prazeres e amargores se misturam
no azeite denso da memória.
O que semeei no corpo amado
provei rascante em mesa alheia:
fui de quem o suor só exalava pedras de sal.
O que de fato floresceu
rompeu as fronteiras da alegria temperada
e me entornou o aroma de mais querer.
O desejo obrigou-me a regar o indevido
porque apenas no indevido posso manter intacto
o sabor que o outro não mais reclama.
Partiu sem deixar
sinal, bilhete ou vestígio
como o ladrão que para roubar
não precisa acender as luzes.
A casa era toda sua
o resto de coração também
mas morava tão dentro do silêncio
que pouco ou nada consentia.
A única peça esquecida
– uma camisa xadrez –
hoje é toalha de mesa
para a refeição diária.
Ainda ouço a porta se abrir.
Mas é apenas o ladrão.
Relembro o corpo do amor rompido
nervos desfiados, servidos
no banquete da nossa distância.
Como pode, por menor que seja,
uma alegria acabar-se grosseira
aos pedaços de em mais nada existir?
Os restos deste amor talvez se guardem
nos olhos das crianças que vimos crescer
e que, na mais pura inocência ou crueldade,
perguntam a que horas você vai chegar.
Aquele cinema não mais existe
mas ainda queimam em mim
as cenas de ciúmes cinematográficos.
Os olhos daquele desejo agora dormem
mas o sono denuncia
a embriaguez de vida.
Acabou-se aquela delicadeza de passos paralelos
mas as ruas continuam pedindo
a comunhão dos trajetos divididos.
Aquela certeza de vitória é passado
mas restam aplausos secretos
nos bastidores da gratidão.
O céu daquele abril nunca mais se deu
mas as tempestades de versos insistem
nas mãos eu agora só minhas.
Morreu aquela vontade de conquistar o mundo
mas a cada dia uma nova esperança escapa do fim
e exige janelas para respirar.
Eu não sou mais aquele
mas aquele ainda te ama.
*
Lembro bem, era outono eas asas do abandono ainda estavam encharcadas dechumbo.As encolhi, sem conseguir escondê-las, diante do inesperado reencontro. Era pouco, muito pouco, o tempo da nossa primeira distância.
Ele, ali, de repente, eterno, pés tímidossimetricamente sustentando o corpo magro, à minha frente, nada mais tinha a dizer. Eu, ali, no sempre,inchado, olhos inacreditados desesperadamenteamparando os lábios solitários, à sua frente,proliferava palavras desenterradas do dicionário maisantigo do mundo: o amor bruto que não cessa.
Sobre sua cabeça derramei uma chuva depapéis em branco que as mãos, em trêmulas, iam rasgando, instante a instante, palavra a palavra.Imóvel, aceitou com mérito e sabedoria a humilhaçãode minha dor. Eu chorei, por nós, pela inocência dosque creem na limpidez do amor, sem que ele tirasseos olhos decididos de mim. Havia acabado. Nossa primeira distância era também a derradeira.
Aos que passavam, nos corredores daquela biblioteca pública, não desejávamos o boa-tarde esperado ou dávamos a explicação devida, já que doishomens, à frente de tantos, despiam suas urgênciasdiante de um passado interrompido. Nenhum delesteve a coragem ou a decência de perguntar por quenossas intimidades, aos prantos, trocavam lenços. Intrusos, o que eram, todos eles. Que esperassempara ver quem gritaria primeiro, que chamassem apolícia, que tão somente passassem, nada dissesseme rezassem. Ali, naquele instante de névoa econdolências, só cabíamos nós, numa cena que ocinema jamais ousaria reproduzir. Impossível corte,impossível enquadramento, impossível retomada. Eu flutuava em torno de uma esperança inútil. Elefuturizava-se, aguardando os letreiros subirem paraencerrar a sessão.
Eram 16h53 quando o meu peito assinou a sua alforria e ele passou a ser alguém que podia, ao tempo que desejasse, aposentar parte de sua históriae não contar ter sido protagonista do maior amordo mundo. Eram 16h54 quando o mundo passou aser, para mim, uma aldeia de crianças invadida porlobos alucinados, onde ora eu gritava de pavor, oraeu avançava sem pudor ou remorso. Eram 16h55quando o funcionário da biblioteca me encontroudespido no chão, acompanhado de bonecas, vísceras,carrinhos, sangues, e avisou que já era hora de fechar.
A quantas andas, velho cavaleiro
hoje deveras oco e longíquo
a galopar nos terríveis prados do arrependimento?
Terás frio?
Terás fome?
Por que tão só
se diante de exércitos vencidos?
A sombra de um soldado morto assusta?
Por que tamanho desespero
ao veres o surgimento de uma flor
que por toda a estrada insiste?
O aroma de uma lembrança desprezada atormenta?
Tantas perguntas para uma só resposta:
quando Deus e Diabo concordam,
o melhor é aceitar a sina do exílio.
Sim, muito triste
o sangue recusar o corte dos pulsos
e se manter no corpo
lentamente coagulando a culpa.
Bastante desolador
não poder fugir para aliviar
o assédio dos fantasmas que sobreviveram.
Não te desejo o mal nem o bem
mas um destino repleto de insônias.
Descanso impossível para a dor
quando às costas a capa pesa.
Repouso improvável para os pés
quando a porta não reconhece as botas.
Não soubeste honrar a coroa que de mim roubei
para legitimar o teu reinado
agora reles inutilidade de ruína sem escombros.
Segue as profundezas do teu deserto sem lua.
Quem sabe ali encontres
o falso perdão de outro que nunca traíste
mas que com tua própria espada
e em meu nome
na primeira curva se vingará.
Tua música é seca
notas de deserto em dor.
Vendes árias e sonatas nos mercados
por não saber regê-las.
És partitura adulterada pela brutalidade
samba de pernas flácidas e quebradas.
Murmuras falsos gemidos
e quando entoas, o que seja, sangras.
Não podes dividir instrumento ou cena
já que solas o egoísmo, descomparsa da alegria.
És melodia cheia de si, menor
fado desertor das melancolias.
Morres à balada do meio-dia
acreditando ouvir maestros – depostos.
Trilha sonora da discórdia
te cobres com a ladainha das mágoas.
És batuta desorientada pela vergonha
tango traidor dos dramas originais.
Comandas a orquestra invisível da burocracia
onde impera a flauta enferrujada dos prantos.
Piano sem dentes da aurora
arrastas o realejo intermitente das falsificações.
És cítara desenganada pelo tempo
xote da solidão vesga dos infortúnios.
Exibes às costas um violino sem cordas
sombra do oboé grosseiro da acomodação.
Pausa abrupta da indelicadeza
reproduzes vibratos, para o desinteresse coletivo.
És bumbo de couro amolecido
valsa oficial do desamparo.
Ofereces um coração de ecos desencontrados
cativeiro para as obras desprezadas.
Boca sem língua ou palavra
replicas em desacalantos os carimbos da corrupção.
És búzio sem a voz das sereias
tecnobrega das intelectualidades vulgares.
Espalhas certezas caladas na dúvida
trovões nascidos no ventre da ofensa.
Pólen semitonado do nada
fertilizas o sussurro promíscuo dos celulares.
És boi sem bumbá
bolero sujo da ingratidão.
Interpretas acordes e gestos dissonantes
sob a tradição surdina dos ternos impecáveis.
Grito de gozo abafado por travesseiros.
O que não pude ser amado
me amei.
Carinhos no espelho
nte os chicotes do mundo.
Alguém me ensinou a ser breve
quando de meu amor duvidassem.
Terá sido meu pai?
Os caixeiros-viajantes de minha mãe?
Talvez os hóspedes do sítio de minha avó:
a eles eu ouvia mais que ao susurro dos livros.
Pouco importa quem foi,
mas a esse alguém agradeço em orações.
Cresci manso, mar tranquilo
porém ao fundo olhos bravios,
correnteza que engana a marujos e saveiros.
O tempo sempre dependeu das condições exigidas.
O colo que perdi
comprei nos comércios.
A vida que sonhei
por mais sonhos vivi.
Companhia para astros solitários
no céu ou na TV, mais um
na multidão apressada de cada dia
em ser mais multidão.
O medo que senti
venci sem deixar de herança.
O aplauso que mereci
repousei no passado.
De cada abismo, uma curva
dos finais felizes, recomeços.
O que não pude amar
amei.
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