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Ficha Técnica

Rio de Janeiro, 2017, 144 páginas

Programação visual: Heliana Soneghet Pacheco

Ilustrações: Liekki Akerfeldt

Fotos: Fernando Garcia

Gráfica: Reproarte

Cometários do poeta

Quando o poeta é o porta-voz do homem

Trata-se do meu livro mais ‘duro’, cujo primeiro capítulo se dedica a mostrar minhas inquietações políticas e a discutir as atuais relações trabalhistas. Nas discussões com a designer Heliana Pacheco, com quem trabalho há quase 30 anos, percebemos que não caberia ressaltar a questão manual, mas contar com ilustrações impactantes, que ficaram a cargo de LiekkiÅkerfeldt, uma jovem e promissora artista gráfica.

Na verdade, são três livros num só, o que exigiu uma programação visualmais abrangente, que, em razão do conteúdo dos poemas, foi desenhada a partir das cartas de baralho. Além da primeira parte, intitulada Ases incapazes, o livro traz outros dois capítulos autônomos.

De onde o curinga observa o mundo é composto por poemas mais existencialistas e amorosos, com destaque para a minha relação com a poesia: Fatário significa aquele que acredita na fatalidade, no destino. É assim que vejo a poesia na minha vida. O terceiro capítulo, O rei e o valete das acácias azuis, apresenta uma faceta minha até então desconhecida: É uma história, uma espécie de fábula moderna, que escrevia há alguns anos, sem muita pretensão, sobre um rei poderoso que se apaixona por um valete comum. Achei que era chegada a hora de mostrá-la.

Poemas

HOLERITE

Avaliações equivocadas

premeditadas tramoias apontam

o desligamento sumário do trabalhador.

Gavetas vazias e uma caixa de papelão

a misturar documentos, retratos

uma certa esperança de reconhecimento.

Um verso escapa do embrulho

e pelos corredores da empresa

consola os olhos de quem

ainda não sabe conviver com injustiças.

O poeta jamais será demitido.

A ÚLTIMA REFEIÇÃO

Quem se acha exímio ás

na política ineficaz dos pregões

não passa de um capataz

capaz de compactuar falsas delações.

É judas, barrabás de si mesmo

cego alcatraz com asas para dentro.

Só merece viver mais um dia

para roer o osso assaz proscrito

servido no calabouço da culpa fugaz

onde a última contumaz refeição

não satisfaz o apetite voraz

da vil e mordaz traição.

A NOVA CALIGRAFIA

Seu desejo é analfabeto

mas sabe decifrar os códigos

em minhas cartas de linho.

Sorri a cada palavra

sem conhecer os significados.

Nunca ouvir falar de poesia

quanto mais de sombras.

Mas gosta do que sente.

Também se aprende a ler com os olhos fechados.

DICIONÁRIO

Seu dicionário é farto

em páginas e explicações

.

Mas lá apenas uma palavra existe.

Aquela que, por não saber pronunciar,

cresce em seu peito

como uma colônia de cupins.

Amor não se mata com silêncio.

A INFAME CÚRIA

Aprendi a engolir discursos azedos

para depois vomitar reclamos atentos

sobre o colo de políticos lazarentos

na ânsia de algum mínimo consenso.

Mas todos os juízes estão bêbedos

ao admitirem que, deveras soberbos,

podem validar recursos, contratempos

e promover equivocados desfechos.

Em meus olhos só há farpas de veneno

certa indignação poética em meus dedos

por não aceitarem o desumano despejo

de corpos e almas em solitários aterros.

Rogo em clara voz por discernimento

onde a vida não seja o mero sustento

de ar, pão e água para eternos detentos

relegados à compaixão de avarentos.

Ó irmãos de pátria, criação e arremedos

alcemos a bandeira no mais altivo arvoredo

para não mais sermos desprezados brinquedos

nas mãos dessa infame cúria de pelegos.

RECONHECIMENTO

vida era um nome, rezado, amaldiçoado

amanhecido em todas as placas das ruas

no orvalho que coloria todas as placas das ruas

na névoa que cobria todas as placas das ruas.

Seguir adiante era ouvir esse nome.

Menos ou mais era caminhar a esmo

sofrer labirintos desnecessários

no intuito de encontrar outra saída

que não fosse ler aquele nome

em todas as placas das ruas.

Assim eu morava em todos os endereços, em todas as casas,

porque no silêncio de todas elas lá estava o nome

a me fazer companhia na janela das esperas

nas cerimônias de formatura, na busca por empregos

nos aniversários em que me achavam tão sozinho

quando, na verdade, eu transbordava intimidades.

Minha solidão tantas vezes se confundia com minha alegria

porque o nome se apoderava de meu corpo

e eu só podia sentir o que procurava aceitar.

Vãs, as chances de procurar aceitar

o que não cabia em qualquer explicação,

já que a sombra daquele nome sempre estava ao meu lado

nas compras do mês, no desacerto de escolher roupas

na falta de senso em combinar verde e azul

para disfarçar a palidez das paredes do quarto.

Não havia aprendizado mas cumprimento de um destino.

A presença desse nome escreveu-se inabalável na juventude

tentou, de muitas formas, manter-se fiel no mapa do tempo

e aninhar-se na maturidade que me trouxe o conforto

de, inclusive, dispensar o que me era essencial.

Entre os sentimentos e objetos de luxo que abandonei

estava aquele nome, reconhecidamente envelhecido

mas ainda prestes a me causar danos e surpresas.

Foi-se o nome que fez de mim um homem com ecos

depois o seguidor de um só eco, hoje um desertor.

Se de nada me arrependo de nada mais também me chamarei.

Passo pelas ruas, admito seus títulos de doutores,

autores, filósofos, políticos, artistas, religiosos

e lembro, com alguma ternura e distância,

que um dia apenas eu sabia ler

o que mais ninguém no mundo saberia compreender.

QUANDO A CELA SE ABRE

Escrever sobre a dor é próximo demais.

Mais ou menos como

trocar receitas com o vizinho.

Falar sobre a dor

já é mais complexo.

Mais ou menos como

trocar blefes com o baralho.

Pensar sobre a dor

é o pior dos pesadelos.

Mais ou menos como

trocar favores com o carcereiro

e não conseguir partir

quando a cela se abre.