Portal Educação Pública, RJ, 5/7/2005
Flip/2005 homenageia Clarice Lispector
Festa literária de Parati

“Quero escrever o borrão vermelho de sangue com as gotas e coágulos pingando de dentro para dentro. Quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez. Que não me entendam pouco-se-me-dá. Nada tenho a perder. Jogo tudo na violência que sempre me povoou, o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu, por falso respeito humano, não dei. Mas aqui vai o meu berro me rasgando as profundas entranhas de onde brota o estertor ambicionado. Quero abarcar o mundo com o terremoto causado pelo grito. O clímax de minha vida será a morte." - Clarice Lispector

A Festa Literária Internacional de Parati (Flip) será realizada de 6 a 10 de julho, e nesta terceira edição fará homenagem a uma das maiores escritoras brasileiras: Clarice Lispector. Para tanto, foi convidado o diretor de teatro Naum Alves de Souza, que contará ainda com depoimentos de amigos e estudiosos, leituras de seus textos por artistas e autores e várias demonstrações de elogio à obra dessa escritora tão ímpar na literatura brasileira.

Clarice Lispector nasceu em Tchelchenik, na Ucrânia, em 1920. Aos dois meses fez sua primeira viagem, quando a família decidiu fixar moradia no Brasil - mais precisamente em Recife. Transformou-se de Haia para Clarice, por sugestão do pai que mudou os nomes de toda a família. Outros nomes também fizeram parte da sua história, já escritora, em jornais do Rio de Janeiro, como: Tereza Quadros pseudônimo usado por ela na página "Entre Mulheres", do jornal O Comício; Helen Palmer, usado na coluna “Correio Feminino – Feira de utilidades”, do jornal "Correio da Manhã"; e quando assinava com o nome de Ilka Soares uma coluna no Diário da Noite.

"Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo". – Clarice Lispector

Clarice teve uma infância diferente, pois sua mãe muito doente não podia se encarregar da educação das filhas. Ela foi criada pela irmã Elisa e quando estava com 9 anos de idade sua mãe morreu deixando Clarice cheia de questões que vieram se refletir em sua obra. A família lutava com certa dificuldade econômica o que deixava a escritora muito sentida, pois o que mais queria na vida era poder ler livros, muitos livros.

Um pouco mais tarde, a família se transferiu para o Rio de Janeiro, e mesmo ainda estudante, logo começou a dar aulas de português para poder bancar sua “fome” de leitura. Estudou em colégios tradicionais, piano - fez alguns cursos diferentes como hebraico e iídiche, para entender suas origens -, inglês e direito na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por somente ser a oportunidade de se graduar, muito comum à época.

"... eu só escrevo quando eu quero, eu sou uma amadora e faço questão de continuar a ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade." – Clarice Lispector

Desde criança gostou de escrever suas “sensações”, como queria que fossem chamados os textos que foram recusados, quando ainda criança, pelo Diário de Pernambuco, justamente por serem maduros e profundos demais para a sessão destinada aos pequenos. Mais tarde, a partir de 1940, seus contos começaram a ser publicados: primeiro, Triunfo, depois Eu e Jimmy, o que fez com que a escritora produzisse vários outros textos, por pura ansiedade de vê-los publicados. Conciliou estudo e trabalho, e quando passou a morar com a irmã, freqüentou assiduamente bibliotecas convivendo com a mais fina literatura de Rachel de Queiroz, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Dostoiévski etc.

E escrevia, escrevia, escrevia... Quando casou com Maury Gurgel Valente, Clarice passou a viajar muito: primeiro pelo Brasil, e depois por países do hemisfério norte – Europa e Estados Unidos. Nesse período esteve afastada dos amigos, que foram fonte energética de sua vida e de sua carreira. Encontrar com as pessoas sempre trouxe muita alegria para vida de Clarice e de sua carreira, e muito mais encontrar amigos - , Lauro Escorel, Lúcio Cardoso, Antonio Cândido, Ledo Ivo, Rubem Braga, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, entre outros –, que a incentivavam a escrever e se achavam diante de uma grande escritora. Eles faziam críticas para que ela escrevesse sempre e não desistisse da carreira tão promissora.

“Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor.
Que tem que ser vivido até a última gota.
Sem nenhum medo. Não mata." - Clarice Lispector

A ausência da família e amigos pelas longas viagens, problemas com o marido e o filho doente – teve dois filhos, um deles esquizofrênico - fez com que Clarice alternasse bons e maus momentos refletidos em sua obra de maneira sempre positiva, pois a cada conflito interno emergia a mais pura poesia. Muitas vezes pensou em desistir e se entregar à depressão – já que tantas foram as cicatrizes – mas a fluência de sua escrita originou uma obra inesquecível.

Sua bibliografia, apesar de relativamente pequena, é densa como a mais inatingível floresta. Dela, surge oxigênio tão vital à respiração como as palavras que vai desenrolando para formar as frases. Foi traduzida para vários idiomas e interpretada por inúmeras teses de mestrado, doutorado e vários estudos, além de shows, peças de teatro e músicas. Deixou em sua obra - um dos mais ricos bens brasileiros – um grande motivo de orgulho para fãs de literatura.

Morreu aos 57 anos, em 1977, com marcas indeléveis devido a um incêndio em seu quarto que tentou apagar com as mãos – para ela, na época, corpo e alma ficaram muito feridos, pois na tentativa de conter o fogo queria salvar o filho ameaçado também –, cuidado de uma mãe furiosa diante da ameaça à cria...

“Escrever é procurar entender,
é procurar reproduzir o irreproduzível,
é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada." – Clarice Lispector

"Conheci” Clarice por intermédio de minha cunhada Olinda que um dia me apresentou ao livro O Mistério do Coelho Pensante, logo depois ganhei Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. E foi amor ao primeiro livro. Um amor que dura até hoje. Ganhei vários de seus livros em meus aniversários e natais – presentes tão queridos que eram. E foram várias as vezes que vi espetáculos em sua homenagem, como “A Hora da Estrela”, show em que Maria Bethânia homenageava a escritora por seu livro do mesmo nome, somente para estar “mais perto dela”.Clarice Lispector é musa para minha geração – tenho várias amigas que deram a suas filhas o seu nome, numa homenagem explícita. Posso me vangloriar de tê-la “apresentado” ao meu amigo-poeta Jacinto Corrêa e vê-lo, mais do que fã, um seguidor de seu estilo indiscutivelmente belo de escrever e definido como “pulsações”.Portanto, a Flip/2005 está mais do que certa: homenagear Clarice Lispector não é um acaso, é compromisso de quem entende de livros e sabe o valor de ler um bom volume escrito por uma excelente escritora.