A RESPEITO DE GATOS E TARTARUGAS

Eu que deveria gostar dos gatos, animar-me com a real possibilidade de legitimar uma solidão altiva e elegante, acabei por preferir as tartarugas - tão a longo e aprendizado prazo. Também elas são prazerosamente solitárias, eu sei, e essa é a realidade lenta do tempo que me conquista: os gatos são espertos e rápidos demais.

Logo eu, tão agonizado para tudo, deveria ser apaixonado por eles e me identificar de pronto. Mas não. Dei para tentar entender o segredo contido das tartarugas e a passar tardes docemente vigiado pela lua, reparando-as e procurando conter-me, já no ventre do mundo, com certo alívio e tranqüilidade. Os gatos me olham e me cobram o imediatismo que também me exijo, e por isso mesmo me atrapalham. É mais que suficiente eu crucificar minha própria ansiedade.

Sete vidas e sete fôlegos e sete elegâncias me parece mágico, mas pouco sustentável em mim. Os gatos levam, ocultado, algum segredo chave do que é humano e vivem como que desejando ser admirados. E impune e sabiamente são. Também deve ser levado em conta o temor de minha vaidade de não conseguir aprender a elegância felina. Para se ser um gato não basta ser sozinho, há de se ser elegante de corpo e espírito, como o equilibrista que se descobre altivo diante da platéia e espera o aplauso – ainda que apenas no camarim, a sós, saboreie o prazer solitário de sua altivez.

Já as tartarugas, pertencem a uma espécie de solidão mais caseira, mais solta e, me parece, mais feliz. Donas de uma elegância difícil de ser acompanhada pelos olhos, concordo, mas tão facilmente aceita pelas mãos. Mas sempre me enchem os olhos e as mãos de companhia: posso tocá-las sem medo ou suspeita de não estar com a postura de corpo e espírito correta. As tartarugas são feitas de passos, e o segredo de sua devoção para com o mundo é a lição da casa – moram em si mesmas; habitam-se entre autoparedes e automistérios.

Reclusão voluntária ao casco: necessária questão. E se deixam. E se amam. E se renovam sem mudanças visíveis. E envelhecem renovadas. Têm o tempo como aliado e suas aparentes ausências, de ficarem enterradas na terra, garantem o enorme prazer de refazer as horas, reciclar os lerdos movimentos rumo à aurora que vêem e esquecem, que vêem e adormecem. As tartarugas, já no nome, pedem cumplicidade e voz baixa. Há de se gritar para atingir Deus? Por opção, elas sussurram: voz e gesto.

Mais sobre os gatos, o que sei, peco. Pouco entendo quando os vejo de pêlos eriçados e bigodes esticados, prontos a se defenderem. Quem sabe, também na defesa, não exijam a postura intacta e inatingível? Possivelmente. É um bicho nobre, o gato. Ainda que eu lhe cobre a popularidade de movimentos natural dos cães, tenho que admitir que diariamente é ele que reina entre esquinas, telhados e almofadas. Silêncio e soberania. Os gatos não cedem carinhos, escolhem e negociam - mesmo que o que desejem seja a mais simples e pura troca de carinhos. É um bicho forte, o gato. Não se intimida com cemitérios ou padarias pouco refinadas: se garante na própria elegância de olhar estrelas, com o corpo absolutamente ereto, e encontrá-las. No fundo, a independência dos gatos me assusta. Eles possuem o meu respeito.

Mas existe o ponto em comum entre gatos e tartarugas. Ambos administram a fragilidade humana como ninguém, ao fingirem precisar do alimento do homem, do carinho do homem, da proteção do homem, da ignorância do homem, da generosidade do homem, da carência do perdão, do perdão do homem. Quando, na verdade, foram criados tão somente para explicar – cada um a seu estilo – a existência inexplicável do tempo.


1992