CACHAÇA E CONTREAU - O que mais existe é covardia e pilantragem, o senhor sabia disso? (Saber dessa maneira eu não sabia. Conheço a covardia que sofro, aquela que me ataca sem chance de contragolpe e me torna omisso. Mas não conhecia essa covardia doída, tão bem questionada pelo homem depois de dois copos de cachaça virados em dois solitários e violentos goles. Quanto à pilantragem, essa percebo à distância, mas não a tenho. O máximo a que chego é um alto grau de interesse. Mas não sei enganar por muito tempo). - Você enxerga o corpo da pessoa com quem está conversando, mas nunca vê o seu coração. Ninguém passeia pelo coração de ninguém, não é mesmo? (Sim). - Dou comida aos pombos dessa pedreira há mais de quinze anos: pão molhado e restos de arroz cozido. O intestino dos pombos é igual ao dos homens. Tem que receber comida boa e fresca. (Interessante. Sempre achei que se os bichos comessem comida estragada não passariam mal). - Tentaram matar o papa, um ministro de Deus. Mas o rapaz que quase o assassinou foi perdoado pelo santo homem. O senhor também pode ser um ministro de Deus, sabia? (Será? Mas jamais recebi um chamado. O senhor deve estar enganado. Tenho ares de anjo, mas não sou). - Durmo em cima de muros ou no carro-de-burro que carrego. Esta é a segunda vida que mereço e espero que seja a última. De acordo com o espiritismo, sou um iluminado, apesar de pobre e bêbado, o senhor sabia disso? - Não sabia, mas acredito. Somos todos imortais, no fim das contas. (Que diabo, tem maluco em todo lugar. Eu nem estava falando com esse moço e ele ainda se dá ao direito de me responder... Imortal, hein? Essa é muito boa).
1990 |