COMO NASCEU O PRIMEIRO LIVRO

Em 1987, por volta de abril, motivado principalmente por um grande amor que eu vivia, decidi participar, pela primeira vez, de um concurso literário. Era um concurso da Nestlé, que acontecia em Canoas, Rio Grande do Sul, se não me engano. Era necessário mandar um determinado número de poemas. Foi aí que, lembrando de um poema e outro, e imaginando a ordem que eu ia querer dar a eles, resolvi encaminhar não um punhado de poesias agrupadas, mas um livro.

Acabei montando quatro, de uma tacada só: três de poemas (Cenas nuas, meu segundo livro publicado, lançado em 1990; Jogos urbanos, meu terceiro livro publicado, lançado em 1992; e O cavaleiro da lua, que era, na verdade, a reunião dos poemas que haviam sobrado de Cenas nuas e de Jogos urbanos – não era um livro de verdade) e um de contos (À espera do acaso, ainda inédito).

Quando comecei a montar os quatro livros que mandaria para o concurso, percebi duas coisas muito importantes. A primeira é que, enfim, chegara com clareza e determinação a vontade de publicar um livro. A segunda, que não estava com a menor vontade de mandar para julgamento alheio o primeiro livro que eu viesse a publicar.

Aí, decidi que esses poemas “escolhidos” fariam parte de um outro projeto – um quarto livro de poemas, meu Deus! - que começava a se tornar mais do que urgente, devendo ser o primeiro a ser publicado e tendo que sair antes do resultado do concurso, que seria em novembro ou dezembro. Sinceramente, nunca achei que ganharia. No final, já torcia com todas as minhas forças para não vencer mesmo, pois, caso ganhasse, poderia haver alguém interessado em lançar algum deles e não era com os poemas de nenhum dos três livros – que eu adoro, menos os de O cavaleiro da lua –, que eu queria estrear na cena literária. Quanto ao livro de contos, tinha praticamente certeza de que não despertaria a atenção de ninguém: eram textos ainda a serem trabalhados, eu sabia.

Mas como seria esse primeiro livro a ser publicado? Havia apenas a certeza de alguns poemas, a maioria em prosa poética, e nada mais. Um dia, acordei com o nome do livro nas mãos: Entre dois invernos, e tudo se esclareceu de forma muito rápida: o fio condutor, os poemas restantes, o cheiro, a aura de encantação, tudo. Assim, comecei a montar Entre dois invernos logo em seguida ao envio dos quatro livros para o concurso. Eu tinha pressa, muita pressa, uma pressa que depois virou alívio (sincero): nenhum dos livros enviados foi premiado. Motivo ou motivação redobrados para me dedicar ao meu verdadeiro primeiro livro.


Via crucis das editoras, via sacra com Cecilia e Heliana


Originais debaixo do braço, lá fui eu seguir a via crucis de todo poeta iniciante e, no meu caso, absolutamente desconhecido e sem qualquer contato com outros poetas. Entreguei o material de Entre dois invernos a algumas editoras pequenas, umas cinco, se não me engano, e de umas três recebi um parecer positivo. Que o meu livro ia agradar, que misturava poesia e filosofia. Achei engraçado, mas gostei da combinação. Mas havia um ponto: para editar o livro por aquelas editoras, eu teria que bancá-los. Bancar? Mas como assim? Quanto? Impossível. Num curto espaço de tempo, uns três meses, já estava desistindo. Mas fiz uma última tentativa honrosa: fui conversar com um editor que, após ler os originais, topou me receber em seu escritório no Leblon (RJ). Pensou em editá-lo usando ilustrações. Achei o máximo. Mas deu-se aquele silêncio já conhecido. Quanto? Impossível. Resolvi desistir, de verdade.

Nesse mesmo dia, eu havia marcado um encontro com uma amiga designer com quem havia trabalhado no Museu da Imagem e do Som (MIS), no Rio de Janeiro, Cecilia Leal. Uma amiga em comum, a administradora e divulgadora Federica Boccardo, havia me lembrado que Cecilia era muito ligada à poesia, que fazia a programação visual de muitos livros e que poderia me dar dicas de como fazer um livro independente. “Independente, Federica? Não quero. Fazer livro em xerox, com cara de coisa feia, nem pensar”. Mas marquei o encontro. Não custava nada. Além do mais, Federica lembrara que Cecilia tinha contato com editoras. Não a via há tanto tempo e pensei que, independentemente de qualquer coisa (olha a independência aqui outra vez...), seria bom reencontrá-la e falar de poesia - no nosso tempo de MIS, não falávamos nesse assunto. Quase não nos falávamos, na verdade, mas eu sempre a espionava indo embora na garupa de um motociclista lindo que ela namorava. Já tínhamos, sem ela saber, uma certa intimidade.

Chovia muito, dessas chuvas que deixam o Rio paralisado. Eu estava muito desanimado com a minha desistência de publicar o livro e não conseguia esquecer a conversa da manhã com o editor. Eram oito horas da noite quando cheguei ao apartamento da Cecilia em Botafogo. Nosso reencontro foi de uma tal intimidade que, na hora, pensei: tá vendo, valeu a pena ficar espionando-a no final do expediente... Cecilia me ofereceu uísque, preferi coca-cola e fui logo dizendo que não queria mais publicar livro nenhum. Por quê? Contei tudo.

Ela ouvia com uma calma e sabedoria que só tempos depois fui entender: Cecilia tem o dom, ímpar, de saber ouvir com todo o seu corpo. Falei do meu processo criativo, de que escrevia desde os 13 anos, que a poesia era o que tinha me mantido vivo durante aqueles 28 anos. Ela falou que adorava poesia, que já havia feito muitos livros de poesia e que fora cunhada da Ana Cristina César. Nunca fui um grande leitor de poesia, não possuía a exata dimensão real da importância da Ana Cristina, mas eu tinha o A teus pés em casa, presente de minha grande amiga Letícia Campos, que havia sido aluna de Inglês da Ana. Achei que, naquele momento, um imenso manto nos cobriu e, mesmo sem saber por quê, nos uniu de maneira forte e permanente.

Cecilia falou um pouco do mercado editorial, de como a produção independente tinha conquistado novos rumos e espaços, e que a sensação de xerox que eu tinha estava ultrapassada. Mas eu havia desistido, lembra? Lá pelas tantas, pedi para trocarmos de assunto, que não queria mais falar de livro. Ela topou, só pediu para eu deixar os originais encharcados de chuva para ela conhecer um pouco da minha poesia. “Claro, Ciça. Vou ficar feliz de saber a sua opinião”. Conversamos mais um pouco sobre amores, penas, famílias, amizades e fui embora, sem os originais mas com a alegria de ter reencontrado uma pessoa com olhos tão impressionantes quanto os de Greta Garbo. Veria a Cecilia de novo?

Sete horas da manhã do dia seguinte o telefone da minha casa tocou e eu, ainda sonolentíssimo, escutei em tom entusiasmado: “Jajá, o seu livro é lindo! Tem cada sacada! Eu adorei!”. “Mas eu desisti, Ciça...”. “Que desistiu nada. Vamos conversar ainda esta semana. Esse livro vai ter que sair de qualquer maneira. Vou ligar para algumas pessoas e ver o que acontece”.

Fiquei meio confuso. Agradeci e acordei com o dia ganho. Cecilia Leal, designer famosa, entrosadíssima com poetas famosos, sem saber irmã de Greta Garbo, ex-cunhada da famosa Ana Cristina César, havia gostado do meu livro. Antes de desligar, ainda me deu ao luxo de citar alguns Pedaços (série de pequenos poemas que escrevo desde 1979). Lembro que ela adorou

PEDAÇOS XXVII
Você não diz porque não quer.
Eu não falo porque não posso.
Assim, dia sim, dia não, menciono .


Dali em diante, passamos a nos encontrar quando ela podia. Ocupadíssima, me atendia sempre que tinha uma folga. Um dia, falou: “Olha, acho difícil conseguirmos alguma editora. Está tudo muito complicado”. Mas que editora? Eu já nem pensava nisso. Desde que ela gostara do livro, nem a xerox seria capaz de me desagradar. Achei que eu merecia publicar. Nunca mais esqueceria ou esquecerei daquele telefonema.

Mas continuou: “Vamos tentar a gente mesmo fazer. Conheço uma gráfica (Reproarte) que tem gente muito bacana, que pode ajudar. O único problema, como você sabe, é que tenho muito pouco tempo. Mas conheço uma moça que adora poesia, fã de Mário Quintana, que tenho certeza que vai se apaixonar pela sua poesia e que vai querer fazer o projeto gráfico do seu livro. Ela está agora de férias em Fernando de Noronha. Assim que chegar, marco um encontro com ela, mostro o livro e vamos ver o que ela diz. O nome dela é Heliana. Heliana com H”.

Heliana. Fernando de Noronha. Mário Quintana. Esperei quase um mês por aquele encontro. Que aconteceu no apartamento da Ciça. Sem eu saber de nada, Cecilia já havia passado os originais para a Heliana com H, que me recebeu com um sorriso que não cabia em poesia nenhuma. “Você é que é o poeta? Adorei o seu livro! Estou encantada com a maneira como escreve. Vamos fazer juntos?”

Fazer juntos? Claro. E, mais que fazer juntos, passamos a dividir a poesia e a vida juntos. Heliana é minha principal referência poética: acho que depois daquele primeiro encontro, passei a escrever para agradar a mim e a ela. Viramos uma espécie de espelho poético. Que se mantém, sem manchas ou envelhecimentos, até hoje. Anos depois, descobri que ela, invisivelmente, freqüentou a minha difícil infância, cobrindo-me com seu amor fraterno para que eu pudesse sonhar.

Mas voltemos ao nosso primeiro encontro. Pediu para que eu falasse mais do livro: como montei, por que havia escolhido aqueles poemas, por que aquele título. Falei do meu sonho, que havia acordado com o título nas mãos e que tudo pertencia a um espécie de cinza bom (nunca fui fã de cinza, mas o que acolhia o livro era cinza, falei para ela. E a capa acabou sendo de um papelão puxado para essa cor).

Heliana citou uns cinco ou seis poemas e se emocionou com alguns. Falei muito, parecia estar dando minha primeira entrevista para aquelas duas mulheres atentas a ouvir o que eu tinha a falar. E como eu tinha coisa para dizer... Até que senti que estava na hora de calar. Foi quando comecei a perguntar coisas também e descobri que a Heliana e a Cecilia estavam trabalhando juntas numa ONG (o que era isso, meu Deus?) chamada Iser (Instituto de Estudos da Religião), que ficava no Largo do Machado. Falamos de outras coisas mais, como namoros, parentes, Fernando de Noronha, circo, até que resolvemos guardar um pouco da magia daquele dia para que nada se perdesse. Fomos embora: eu, de carona com Heliana. Cecilia ficou em seu castelo.

Depois, eu e Heliana voltamos a nos encontrar várias vezes, e ela sempre pedia para eu falar mais de imagens relacionadas ao livro. Lembro de ter falado que a poesia dedicada a meu pai tinha algo de marrom-claro. Lembro que eu falava muito de circo, cores, transparências. "Outro dia, ganhei essa caderneta aqui, olha, cheia de penduricalhos, onde estou escrevendo milhares de Pedaços". Era o que faltava para a magia descer de vez sobre nós e nos tornar, a mim e à Heliana, cúmplices na vida para todo o sempre. Aquela caderneta, espiralada, era a cara do livro, tinha tudo a ver, para ela. E tinha mesmo. Mas eu não entendia a razão de tanta euforia. Ela quase pulava. Acreditei em seu impulso, como até hoje acredito piamente no que Heliana diz.

Uma semana depois, o projeto gráfico estava pronto. Uma linda e encantada caderneta espiralada, comprida, repleta de papéis coloridos pulando para fora, colados, formando desenhos e sonhos, com o nome do livro e o meu nome estampados numa etiqueta na capa. Heliana mostrou o projeto gráfico a mim e a Cecilia, que fez algumas ponderações técnicas e muitos, muitos elogios. Eu quase não consegui falar. Como alguém conseguira traduzir com tamanha precisão o sentido lúdico do livro? Eu não sabia explicar. Até hoje não sabemos. E continuaremos sem saber, graças a Deus, apenas continuaremos a nos permitir sentir, sonhar e acreditar que é possível fazer livro com poeira ou flores da lua.

Mas como conseguir o dinheiro para bancar a gráfica? Mesmo contando com a ajuda do pessoal maravilhoso da Reproarte (Vagner, José Carlos e Celso), com quem ainda trabalho, eu não tinha grana. Mais uma vez Cecilia mostrou a saída: faça venda antecipada. “Venda o livro, mesmo sem ainda estar pronto, ao máximo de amigos possíveis”. E deu certo. Mais de 80 amigos compraram o livro antecipadamente e o retiraram no dia do lançamento.

Mas antes teve todo o trabalho de colocar, com clipes, os papéis coloridos recortados nas páginas. E minha casa se tornou um quartel-general: todo mundo quis participar: meu irmão Paulo Corrêa, minha amiga e jornalista Mara Lúcia Martins, o cineasta Luís Alberto Rocha Melo, minha ex-madrasta Albertina Alves Vianna, seu filho Marcelo Viana da Silva, a fotógrafa Anna Agonigi, o economista Reinaldo Gonzáles, o quase-jogador de futebol Sylvio Lopes Fialho e tantos outros. E de repente estava o livro pronto, maravilhoso. E vivo.

2007