O GATO SEM GUIZOS

São menos de oito horas da manhã e já estou, sem pertencer, no mundo dos homens engravatados por natureza. E eu, gato sem guizos, fico à espreita de uma tarde para dormir.

Entendo os objetivos humanos, compartilho dos belos ideais fraternais. Mas, ah, como gostaria de colaborar oferecendo o silêncio dos meus sinceros bocejos. Mas o mundo parece me querer: pede a minha palavra e, para não decepcionar a audiência, empresto a voz – minha palavra está muito ocupada em fazer amor com a poesia.

Bom dia, senhores engravatados. Cá estou a fingir ser um de vós. Seria ótimo sermos rápidos e diretos nas discussões. Tenho uma vida inteira de silêncios e pijamas para viver. Que vós dormis de gravata não tenho a menor dúvida. Mas será que também sonhais de gravata? Ah, como eu gostaria de vos encontrar passeando nus na praça pela manhã e me fazendo crer que realmente podemos melhorar o mundo.

Mas colaboro e começo a minha fala como se acreditasse naquilo que digo. Sem a minha voz, não sobreviveria nos mercados onde o grito é moeda corrente.

- Bom dia, senhores. Sejamos bem-vindos a mais esse encontro mundial...

(Enquanto discurso, ninguém descobre de onde vem o barulho dos guizos. É que os arautos da manhã mandaram me avisar que a tarde antecipou um prato de leite quente para mim. E aí uma preguiça santa e inevitável toma conta do meu corpo, da minha voz e me autoriza a ignorar as responsabilidades com a felicidade do mundo. Finjo que estou ali, quando, no colo quente da verdade interior, já me retirei para deitar no canto menos iluminado do quarto do hotel, espreguiçar as patas sem me preocupar com maiores elegâncias, despreocupadamente lamber meus pêlos, vagarosamente alisar os bigodes e dormir o sono dos justos, enquanto os homens me ouvem e crêem estar diante de um ser estranhamente humano - e sonolento. A rebeldia, que me consola, nem passa por perto dos armários onde guardam suas gravatas).

 

2008