LADAINHA AO POEMA INVISÍVEL DE TODOS OS DIAS

Escrevo para os santos renegados
que escolheram as minhas cicatrizes como cama para dormir

Escrevo para os amantes comuns
que em silêncio oferecem a seus amores todas as flores do caminho

Escrevo para os pais órfãos
que não tiveram a chance de se despedir dos filhos

Escrevo para traídos e traidores
na esperança de que prevaleça o sentimento que um dia viçoso se fez

Escrevo para os crentes fervorosos
em suas cruzadas de fé na louvação e no exílio de deuses

Escrevo para os ateus convictos
da precisão da navalha de suas próprias espadas

Escrevo para os que se sentem sós
roubados da possibilidade do encantamento de um encontro banal

Escrevo para os homens de negócios
imaginando vê-los desistirem do peso da forca de suas gravatas

Escrevo para os grandes líderes
reconhecendo que só me lerão quando o jornal embrulhar o peixe do dia seguinte

Escrevo para os que se contentam com pouco
mas nem por isso deixam de saudar os eclipses

Escrevo para quem não consegue chorar
e mergulha em livros e canções à cata de explicações e conforto

Escrevo para quem bebe a madrugada
e em seu nome sangra mas salva a lua da cerca de arames farpados

Escrevo para os não poetas
que vêem a poesia tão além dos poemas

Escrevo para os miseráveis
que mesmo miseráveis nada pedem aos que passam
Escrevo para os homens ardilosos
que desconhecem ser a minha vingança a herança que para eles dedicarei

Escrevo para os que sorriem sem entender por que sorriem
muito menos para quem

Escrevo para os que me odeiam
na vã tentativa de me desvelarem nos que me amam sem nada exigirem

Escrevo para astrólogos e astrônomos
já que possuem o universo nas mãos e nos olhos

Escrevo para os de coração limpo
mas que ousam o barro colorido na educação das crianças

Escrevo para mim
e para os que em mim dormem os sonhos que em mim descobriram

Escrevo para os meus mortos
que me enviam longas cartas de saudade e dúvida

Escrevo para o passado em respeito ao futuro
porque a manhã sempre chega pelos passos de quem nunca partiu

Escrevo para não desistir
e para afastar o desânimo dos jardins que cuido

Escrevo para os distraídos
porque o mundo é um autorama para passeios tranqüilos ou desgovernados

Escrevo para os que não sabem ler
mas sabem de cor o que eu só saberei escrevendo

Por isso escrevo para os que nascem todos os dias
para os que todos os dias resistem
para os que acreditam todos os dias
para os que todos os dias confundem ausência com perda

Por isso escrevo para os que cansam todos os dias
para os que todos os dias festejam
para os que não me cumprimentam todos os dias
para os que todos os dias me esclarecem
a semelhança entre cordialidade e afeto.

Quando a vida não me pede versos
eu apenas vivo, inventando motivos e verdades para não morrer.

 

2009