POUSO

Na porta desavisadamente aberta pelo tempo, os antigos olhos me chegam às terras. Com grandes e cansadas asas me reencontram, remexendo raízes e frutos velhos de tão adormecidos. Olhos antigos, como os de um deus partido em altar marítimo: onda dividida entre a beira e o horizonte, que só se acalma quando o céu decide pela seca. E então só resta partir ou esquecer. Foi assim que partiram.

Na bagagem, alguns de meus anos - era preciso garantia para os novos desafios e alimento para as novas paisagens. E eu risquei, no calendário vencido, os dias de minha materna paternidade, como a mãe que seca o leite para que o pai possa, finalmente, ser belo para o filho. Na bagagem, alguns de meus truques - era preciso sabedoria para os novos encontros, elegância para as novas fronteiras. E eu queimei, na areia envelhecida, os versos de meu dilacerado ciúme, como o pai que adoece o desejo para que a mãe possa, finalmente, dar o peito ao filho.

Hoje, me voltam os antigos olhos, pares de minha primeira solidão ao espelho, que imaginava estarem sempre me vendo, tão desajeitado e quieto que eu era no sofrimento diário da espera. Agora vejo-os, novamente migrantes em mim, limpando as asas na beira e abrancando o horizonte ao fundo. Nestas primeiras tardes da volta, os antigos olhos mais uma vez emanam grandes luzes que me ofuscam e reativam, instante a instante dentro do silêncio travado. Nestas primeiras tardes da volta, posso vê-los crescidos, vestidos de uma velhice cheirosa e confortável.

Não há como ignorá-los, alinhavados que permaneceram à pele de uma saudade sempre viva a prevenir e alertar sobre as tempestades que viriam. Elas vieram, uma a uma, até que ao em vez de assustarem, passaram a ser companhia nas tardes de louças ruídas. Os olhos antigos eram a mentira consagrada da fraternidade que se quebra, mas que ainda assim convence porque quase inutilmente se lembra.

A sina de lembrar suas constantes partidas dorme com a certeza de deixar a porta sempre encostada e passar a vida acreditando que a maresia cortante do vento é igual à esperança que justifica a existência do tempo.

 

1992