Tempo particular

O tempo da poesia é diferente do tempo dos humanos. Enquanto estamos muito preocupados em traçar uma carreira de sucesso, conquistar um amor, manter os amigos – numa ordem seqüencial, lógica e irreversível-, a poesia não tem a menor preocupação em ser caótica ou racional: permite-se uma liberdade estranha de definir.

Reinventa passados, anula futuros, faz do presente uma reles possibilidade. Os dois textos poéticos que se seguem são a prova do que estou dizendo. Em 1992, escrevi um poema de abandono, sofrido, que simboliza o que tantas vezes na vida já ouvimos: “desculpe, foi engano”. Ok, trauma superado, um trilhão de vidas pela frente a serem vividas. Mas não é que a poesia, 15 anos depois, num vento de desatino ou leve vingança, sem reconhecer que eu há muito também já havia dito adeus, resolveu dar o troco ao “desculpe, foi engano”? Pois é o tal do tempo da poesia. Se a gente esquece, ela nem sempre. Se a gente quer lembrar, vai depender do humor dela. “Rascunho de adeus” (uma carta em forma de poema, de 1992) e “Carta telefônica” (um poema em forma de carta, de 2007) registram o tal tempo da poesia, que não temos como controlar, apenas, talvez, tentar contar.

RASCUNHO DE ADEUS
(OU RIO DE JANEIRO, 23 DE MARÇO DE 1992)

O poema pede: me faz.
Eu faço, e nele peço ajuda.

Meu amor de vidros quebrados me ignora.
Quanto tempo já faz?
Bodas de alguma coisa concreta: honras de cimento.
Em teus canteiros minha chuva incomoda.
Nada seques, por favor.
Deixa meus olhos correrem, correrem
até se perderem para sempre sobre ti.
Quando faróis iluminarão o abismo:
soprando as veias, as asas se esticam.
Até onde?
Teu endereço mudou, talvez,
o telefone.

Sobrevôo a imensidão do que é possuir e não ter
e a beleza da língua portuguesa me consola.
Em minhas terras de pierrô, tua voz é guia
da saudade que é linha para tricô de avó.
Deixo teus lábios ressuscitarem, ressuscitarem
até se perderem para sempre sobre mim.
Quando a água fervida reclama na panela
e eu a acalmo, filha de meu repentino desejo por café.
Queimo os dedos e o grito te alcança.
Até onde?
Meu endereço mudou, talvez,
o telefone.
Que toca e eu morro
mas antes me levanto para atender e ouvir
“Desculpe, foi engano”.

 

CARTA TELEFÔNICA

Nada ficou esclarecido. Não havemos de ter a ilusão de que sabemos com exatidão quem fomos ou o que seremos sem nós. E não é mais de nosso interesse saber quem somos hoje, porque podemos descobrir, a contragosto, que ainda os mesmos.

Aceito a acordada distância, aceito as negativas, mas nunca a negação do que construímos. Por que cerrar cortinas aos olhos toda vez que nos vemos? Por que esconder as mãos em bolsos e cabelos sempre que nos encontramos?

Não alimento o passado com migalhas, também não as quero, mas dele cuido com integridade. É isso que lhe peço: integridade ao que um dia estivemos tão unidos que parecíamos ou éramos invencíveis. Não renegue o que por natureza e vontade conquistamos. Faça como eu: mantenha a nossa história dentro dos livros, e quando dela quiser se afastar saia lentamente, sem gritos. As palavras e as lembranças não deixam rastro.

Não finja não ter me visto na fila do supermercado ou na luz do abajur que se acende sem querer toda vez que você se deita e não dorme. Não preciso lembrar que, mesmo entre milhões, nossos corações denunciam, um ao outro onde estamos. É o destino, e não o nosso desejo, quem conduz a vida.

Esta minha declaração, este meu pedido de esclarecimento, é feito da mesma indignação com que interpelei a certeza absurda da professora de Geografia, no ginásio, que dizia ser o sol uma estrela e, como tal, finita. “Não, minha senhora, por mais que a ciência insista, que os astronautas garantam, o sol nunca não é uma estrela. O sol é um astro-rei, independente e que nunca morrerá”. Assim como nós, o que poderia morrer um dia, ecoa quando menos se morre. Por mais que pareça estranho, alguns gatos se jogam dos altos edifícios e caem de pé.

O tanto que já lhe disse é insuficiente. Preciso ouvir o que você tem a dizer, mas, por favor, pelo menos uma vez não tente dizer a verdade, mas o que o seu coração naquele tempo queria dizer. Mesmo que seja “uma primavera de espinhos”. Mas um dia flor? Não há volta possível, sabemos – você partiu sabendo tão pouco e só se volta ao que demasia. A única explicação que peço é a de como conseguiu ir ao mundo e vencê-lo sem as minhas pernas e esperanças. Não, nada explique, apenas diga uma lembrança que novamente nos faça rir e saber que a distância é o nosso melhor lar. Nada mais me prende a você. Nem amor, sexo, dinheiro ou mesmo as voluntárias algemas invisíveis. De tal maneira que sou livre para reivindicar a preservação do que vivemos.

Se o adeus sabe anunciar o abandono, o amor nem sempre sabe pedir respeito. Mas hoje, tanto tempo depois, exijo respeito ao amor que, morto, estende a mão nas ruas em busca não de um trocado, mas de um consolo. Há muito já não o amo, mas a decência de poder lembrar o amor me autoriza a pedir memórias sadias. Lembra quando a sua febre misteriosamente passava para o meu corpo ou quando o intervalo de um dia nos envelhecia a ponto de doer? Eu lembro todos os dias sem sofrer. Por isso, não devo admitir a ignorância do seu esquecimento. Vez ou outra, a sós, erga um brinde a nós, ainda que de copo vazio. Comprometa-se sem responsabilidades com o nosso passado. É sobre ele que poderemos edificar as paixões onde agora moramos. Por mais que não queiramos, a vida requer gratidão.

Sim, aceito fracas desculpas, de preferência com uma pétala na voz embargada. Não, meu caro, não foi engano.

 

2007