A VERDADEIRA FOLIA

Em fevereiro, as tardes do apartamento são invadidas pelas sombras dos blocos carnavalescos que bordavam as ruas da infância. Era sempre um grande medo esperá-los e recebê-los na companhia de janelas, cotovelos e parapeitos. Eu pensava: quando crescer mais um pouco serei um deles? Parecia correto estar ali no meio daquela gente, a suar quase em desespero, a pular como se quisesse trazer Deus para a brincadeira, a cantar como fosse aquela a última possibilidade de canção. Parecia correto ser mais um, mas em mim já sangrava uma também correta melancolia de modos. Eu, naturalmente, já era dono de uma pequena e constante tristeza que volta e meia me assaltava, comprovando-me uma espécie de porto para a chegada de tempestades aparentemente tranqüilas, mas abruptas.

Não, eu jamais poderia ser mais um entre aqueles que todo ano se pintavam de alegria, que se confraternizavam com cerveja e sinceridade. Mas eu poderia continuar esperando-os, recebendo-os, guardando-os nas fotografias coloridas que passei a tirar da janela tão logo aceitei o destino de que jamais poderia estar ali embaixo, no meio daquela gente.

E assim foi durante mais três ou quatro carnavais. Até que também reconheci que os retratos que tirava por si só não bastavam, faltava alguma coisa que, aos 8 ou 9 anos, não me lembro direito, eu não conseguia definir. E cresci sem saber dizer o que era. Por via das dúvidas – podia ser uma ordem calada do destino -, rasguei as fotos e abandonei as janelas e os parapeitos. A folia daquela gente passou a ser apenas a lembrança de um filme, cuja última cena que recordava era a de uma chuva de lança-perfume cobrindo toda a cidade.

Até o dia em que a poesia cobrou da vida uma explicação, e me deu o direito de reencontrar aquela gente que certamente ainda está solta nos pastos dos fevereiros, a atirar os braços para o alto para tentar alcançar a lua, a desejar que o tempo apenas lhes dê a graça do contentamento. Hoje, como há muitos carnavais, torno à tradição de sair pelas ruas de qualquer carnaval buscando reconhecer alguns dos antigos e verdadeiros foliões que povoaram a minha infância. Será tão bom poder dizer a pelo menos um deles que continuo espectador da sua alegria, como em silêncio eu prometi um dia, e que agora já tenho onde guardá-los com precisão: nos versos, em preto e branco que sejam, onde podem descansar a quarta-feira que nunca se lembram existir.


2007