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Cenas nuas

Ficha técnica

Rio de Janeiro, 1990

108 páginas, 93 poemas e textos poéticos

Programação visual: Heliana Soneghet Pacheco

Coordenação editorial: Cecilia Leal

Diagramação eletrônica e digitação: Conexão

Fotografia: Jackeline Nigri

Gráfica: Reproarte

Comentários do poeta

Cenas Nuas: A paixão e o imcomodo do teatro

Apesar de ter sido meu segundo livro publicado, em 1990, Cenas nuas foi o primeiro a ser montado, em 1987, para participar de um concurso literário. Quando estava para montar o livro, pensei: mas o que eu quero dizer com esse livro? E lá fiquei tentando descobrir um fio condutor, uma idéia. Bastou uma boa noite de sono. Era preciso falar de uma paixão que também sempre foi um incômodo na minha vida: o teatro.

Até os meus 30, 35 anos, toda vez que assistia a um espetáculo de teatro ou a um musical em teatro, eu sentia uma atração muito forte em chegar perto do palco e tocar-lhe o chão. Dava uma sensação maravilhosa, de proximidade, como se eu conhecesse muito intimamente os segredos daquele espaço. Era tanta atração que chegava a me dar enjôo. Eu realmente ficava muito mexido, principalmente na adolescência. Cheguei a pensar em ser ator, mas, felizmente, essa idéia logo desapareceu. Eu não passaria de um canastrão de faroeste mexicano de quinta categoria.

Quatro atos

Então, o livro era uma homenagem a essa paixão pelo teatro. Assim, antes de escolher qualquer poema ou título, dividi o livro em quatro atos: O cenário recriado, A alma dos fantoches, Acontecimentos de cena e Camarins de rua. E aí ficou fácil escolher os poemas.

O cenário recriado acolheu apenas um: "A respeito do transe", que fala que o artista é apenas um veículo para a manifestação da arte. Esse poema aconteceu quando fui comprar um anel na Boutique da Prata, em Copacabana (RJ), e fui atendido por uma senhora elegantíssima. Vestida como se fosse uma dama da corte, muito magra, no meio da venda, que quase não se concretizou (eu paguei com cheque e não sabia de cor o meu CPF), ela falou, sem mais nem menos: "Você sabia que na outra encarnação eu fui uma artista muito famosa? Eu era reconhecida pelo meu talento e pela minha beleza. Mas eu maltratava muito os homens, todos a meus pés. É por isso que hoje vivo tão só. Estou pagando tudo que fiz".

Sem saber o que dizer, peguei o anel e fui para casa, certo de que estivera com uma verdadeira artista, que atravessara gerações para me contar a única verdade: o artista nada cria. Mas antes perguntei seu nome: Dona Eunice, que consta na dedicatória do poema:

(...) O segredo de todo artista está na mais estreita verdade de que ele nada cria, apenas expõe-se (...) A arte, por si só, inexiste. Ela é arrancada de cada hora, de cada olho, de cada morte, de cada ressurgimento: mas não é inventada. Todo artista já nasce composto de espantos. Quando dá conta do medo já afogou-se (...)

A alma dos fantoches apresenta uma série de poemas ligados a personagens, sempre presentes em qualquer palco que eu pudesse imaginar: sereias nada boazinhas, bruxas temerosas da fé, atrizes sem talento, e aquele palhaço que uma vez eu vi na casa onde se hospedava um amigo meu, o pesquisador João Elísio Fonseca, do tamanho de um homem de 1,70m. Aquela visão humana, não-humana, repleta de cores e panos, parecendo cansada, me levou à idéia de que é possível abortar uma flor.

A terceira parte do livro é Acontecimentos de cena, com uma série de Pedaços, com poemas de amor, fé, detalhes cotidianos. A quarta parte Camarins de rua traz um cheiro de futuro, com poemas mais enigmáticos, onde consta a poesia "Cena nua", que gerou o título do livro:

O instante mais revelador

é o que se vive solitariamente.

Sem representar-se como artista.

O momento em que o palhaço

- pintado e vestido -

abre os braços

e consegue

ver-se e mostrar-se nu

exatamente no meio do palco.

Sem platéia.

Sem aplauso.

Estrutura gráfica e lançamento

Quanto ao projeto gráfico, que só foi nascer depois do lançamento de Entre dois invernos, ou seja, em junho ou julho de 1989, eu sabia que era necessário que o livro fosse deitado, imitando um palco, e que tivesse divisórias com a cor vermelha, lembrando as cortinas de veludo das salas de espetáculo. A designer Heliana Soneghet Pacheco se encantou com a idéia e me presenteou com um projeto gráfico lindo, em que a capa é solta, simbolizando o desnudamento a que todo ator está sujeito no palco.

O lançamento aconteceu no dia 18 de dezembro de 1990, no Espaço Cultural Lugar Comum, em Botafogo (RJ), que inaugurara há pouco tempo. Para poder lançar o livro lá, eu e Heliana nos propusemos a montar uma exposição com fotos de Cacilda Becker, pertencentes ao dono do espaço, o bailarino e amigo Samuel Santana. Na época, não fiz nenhuma conexão entre os fatos. Hoje, percebo a magia de estar lançando um livro de estrutura teatral e de estar, ao mesmo tempo, montando uma exposição sobre uma das maiores atrizes dos palcos brasileiros. Sorte ou bênção.

O lançamento contou, também, com uma luxuosa performance da atriz Beth Araújo, sempre vigorosa, que, acompanhada ao piano, interpretou o poema "Sonata":

(...) Não penso em termos de continentes.

A terra dá o que deixam.

Os países necessitam de fronteiras demarcadas

e de tratados que os regulem.

É óbvio, eu sei.

Me chamo guardião de almas (...)

Poemas

A RESPEITO DO TRANSE

Todo artista atua procurando iludir o tempo. A cada obra-prima a suspeita de ter tocado (ou varado) o ventre oco de Deus. Quando o tempo foi enganado: a tênue impressão de que se o teve sob as mãos. O segredo de todo artista está na mais estreita verdade de que ele nada cria, apenas expõe-se. Assim, acontecem de maneira natural a autodenúncia, o auto-respeito, o auto-elogio, a autodemência, o autoprazer, o autodesleixo. E nada mais solitário e perfeito que o instante do transe.

A arte, por si só, inexiste. Ela é arrancada de cada hora, de cada olho, de cada morte, de cada ressurgimento: mas não é inventada. Todo artista já nasce composto de espantos. Quando dá conta do medo já se afogou. Quando nada percebe recolhe frutos como se apenas tivesse a fome. A ele não é dado o direito da escolha – universo falsamente livre e largo onde pisa. Enquanto veículo o artista oferece a expressão do corpo. A alma jamais lhe pertenceu.

CASA

O café ainda não é feito às pressas

- manhã vagarosa e longa.

Reparo o silêncio de roupas esquecidas na sala

- sonos prolongados e entregues.

Penso que ainda não é tempo de enfraquecer

- as folhas continuam verdes

- há esperança de frutos.

Raízes fortemente construídas.

Uma parte do futuro

já nos foi apresentada.

Sabemos da possibilidade do corte

da probabilidade da alegria

da certeza do encontro.

Histórias.

CADEADO

Solidão da voz: sem palavra

Unem-se as fibras da língua

Mas os dentes impedem a saída.

O murmúrio, então, propaga-se (.)

(Há resistência sã na espera?)

(Será que ainda lembra de mim?)

ANTROPOLOGIA

Na janela que fechava

tornava-se proibida

a entrada das águas.

Tanto que chovia.

Mas entre a minha dor e a de Deus

prevaleceu o conforto seco de meu pranto.

PEDAÇOS IV

Um encontro

e duas faces de um mesmo acontecimento.

Na verdade

nem sabe que está distante de mim.

RETROCESSOS

O menino, de dentro do ônibus, acena para ninguém na rua. Como se lá estivesse alguém que lhe conforta a dor, alguém que lhe faz falta. Mas não há nada.

No banco de trás, para não deixá-lo triste pela ausência real, também aceno para o vazio: e o menino me olha – sem qualquer espécie de susto ou surpresa. Apenas ri como se dissesse: “É mesmo assim. Você é outro que sabe”. Depois vira o rosto e me esquece.

Durante o resto do trajeto, até chegar em casa e me esconder sob grossos cobertores, achei que o menino realmente já sabia o que era não ter do que sentir saudade.

PARTILHA

Você detém a memória.

Eu, os fatos.

Na dolorosa divisão de bens

deixou-se a esmo as paredes nuas da casa.

INTERLÚDIO

Sobram misérias.

O país avança

em torno de si.

Sobram-me rancores e

um país que avança

rumo ao futuro que volta.

Não digo nada de novo.

A dor é a mesma.

VENTRES

Americas

que surpreendo desacentuadas

se desesperam em blocos.

A mulher do norte

abortando seus horrendos campos podres;

a do centro

extravazando sonhos em mares e sangue;

a do sul

ecoando silêncios entre dores e inventados prazeres.

Américas

que separadamente acentuo

limitam a gerar.

A primeira mãe

devorando os próprios fetos secos;

a segunda

sonhando fortes meninos;

a terceira

espantando permanentes homens sensíveis.

Comentários da designer

Cenas Nuas

por Heliana Soneghet Pacheco

A parceria

Depois que havíamos feito Entre dois invernos, uma parceria entre mim e Jacinto se formou naturalmente. Fizemos juntos uma exposição sobre Glauber Rocha (1990) quando trabalhamos num casarão em Botafogo e foi quando ele escreveu:

tarde, longe de ser quase noite.

Alguém, quando eu, reclamou do sol.

As avencas pareceram dar de ombros.

Heliana ouviu.

Mas ninguem ousou reclamar da tarde.

Variamos os passos do único passeio… e por aí vai.

Já pensou conviver com alguém assim? Pois é, imagine, então, o privilégio. E não é que o moço escreveu um outro livro?! Na verdade, parecia que ele escrevia e montava ao mesmo tempo. Não era um processo linear. Era um descobrimento. Ele sentia, escrevia ou coletava seus escritos que encaixassem na alma do livro.

O livro

Jacinto via Cenas nuas como um palco com cortinas aveludadas, cor de vinho. Haviam atos que pediam a cortina. Havia gente e não máquina. Havia nobreza.

Pensamos, logo de cara, em veludo vinho para a capa, mas inviável naquele momento. O desafio seria fazer com o que tínhamos. Tínhamos idéias e disposição. O formato, sem dúvida, deitado. Afinal, falávamos de palco. Papéis de cor seriam divisões no livro chamadas ATOS. Seriam as “cortinas”. A capa, de alguma forma, seria a cortina de veludo, mesmo que só na cor. Chegamos a pensar em Ato I: marrom claro (beje), Ato II: creme (vergé/amarelo claro), Ato III: azul acinzentado/meio roxo e Ato IV, telha (abóbora).

Chegamos à conclusão de que os atos deveriam ser da mesma cortina da capa e decidimos adotar somente papel vinho para todas as divisões do livro. O vinho era o vinho do papel color plus. Queríamos exatamente aquele tom. Usar papel já colorido dava unidade à cor e evitava os custos da impressão colorida. Ao decidirmos por isso, nos deparamos, entretanto, com o desafio da impressão do texto no vinho, que não poderia ser em preto. Não podia ser um texto mais escuro que o papel porque ficava “pesado”. Os títulos eram em branco, precisavam ser em branco. A solução foi imprimir em silkscreen.

O toque humano se fez pelo uso da escrita a mão nos títulos das “cortinas”. A espessura não poderia ser nem muito fina, porque o silk não funcionaria, nem muito grossa porque ficaria pesado. O toque nobre foi dados pela escolha da fonte Garamond, que, com o seu ‘a’ amassadinho, também era poética.

Livro pronto, impresso, cheirinho de novo, descobrimos um erro de revisão que mudava completamente o sentido do poema. A atriz, “que não acreditava ter ganho o papel por favor”, ficou sem o papel por “pavor”. Resultado: novo batalhão de anjos foi convocado para consertar livro por livro, com delicadeza para transformar p’s em f”s sem furar o papel na hora de apagar e com arte para reescrever a letra correta. Confesso que parte de mim se deliciava. Tocarmos todos os livros e deixar nossa energia em cada um me encantava. O que foi maravilhoso no primeiro livro se repetia nesse, por acaso. Acho que fiquei viciada.