Rio de Janeiro, 2003
98 páginas, 78 poemas + 2 textos (abertura e término).
Programação visual: Heliana Soneghet Pacheco
Revisão: Marcelo Secron Bessa
Ilustração: Pablo Esdras
Assessoria técnica da capa (patchwork): Daniêla Soneghet
Gráfica: Reproarte
Para mim, a montagem de um livro é muito diferente do processo de criação de um poema. A poesia nasce livre, sem qualquer grilhão: pode ser bela, feia, às vezes pouco importa, às vezes o que importa é vê-la parida. Já montar um livro me exige muitos pensamentos, muitas horas de respiração (são raras às vezes em que ele chega pronto).
Poemas casados foi, até hoje, o livro mais difícil de ser finalizado, passando por fases variadas. Na verdade, a idéia inicial era montar um livro chamado “Diária” que registrasse a minha relação cotidiana, seja escrevendo, seja lendo, com a poesia. Todos os poemas fariam alusão à poética, de uma forma ou de outra. Mas logo depois da idéia nascida, o livro resolveu dormir um pouco e passei uns dois, três anos pensando, respirando, até que descobri que ele era outra coisa.
Surgiu a necessidade de falar do tempo, da infância, da adolescência e da maturidade de uma forma amorosa. A partir daí, fui buscar os poemas em meus cadernos que passassem esse sentimento. Durante a viagem, percebei que alguns poemas estavam muito ligados a outros, como se falassem entre si. Aí percebi que o tempo sobre o qual queria falar era o da proximidade, o do toque ou do quase-toque, todas as sutilizes, todas as lutas, todas as conquistas que envolviam a minha vida com o tempo.
Tudo isso me remeteu, de imediato, à minha avó paterna, Emília, e às tardes que eu passava a seu lado espionando-lhe as mãos de costureira entre agulhas, linhas, panos, máquina de costura e muita sabedoria de fazer valer a sua vontade diante do tempo:
Ainda posso ver minha avó
no quarto de costura
a pregar botões em vestidos turquesa
e a me revelar em silêncio:
são estrelas redondas que bordo no céu.
Também em silêncio eu lhe sorria de volta.
Até hoje minha poesia se veste
com o resto das linhas coloridas
daquelas tardes.
Poemas casados é um tributo a ela e ao seu poder (ela venceu o tempo) – há várias citações a ela durante o livro. Também é uma homenagem a São Damasceno, a quem o livro é dedicado, santo que inventei (na verdade, ele existe, mas nunca deixou registro histórico na Terra) como padroeiro de minha poesia. Há muitos anos escrevo sobre ele, um santo mais humano do que qualquer outro, cheio de versos e vícios para contar:
Quando apareceu bêbado na porta de minha inspiração, quase não o deixei entrar: homem esquisito, mal vestido, cabelo despenteado, relógio de pulso parado. Se dizendo um santo desertor, pedia, sem qualquer pudor, para passar a noite em minha casa. Não portava auréola nem aparentava poderes, sequer sabia abençoar ou voar de verdade. Não havia garantias, mas alguma sinceridade eu conseguia perceber: os olhos de criança e a voz de avô me fizeram acolhê-lo.
Dei de comer, dei de beber, dei de observar aquela estranha figura, já alegria, mas ainda mácula, uma figura que mais parecia um anjo envelhecido. Deu de comer, deu de beber, deu de contar história sobre a minha vida, já folia, mas ainda páscoa, uma vida que mais parecia um filme desconhecido.
Quando perguntei por que o exílio em meu apartamento, falou do meu nascimento, de ser ele o piloto de pouco talento daquele objeto voador não-identificado que me deu as boas-vindas ao mundo. Afirmou ser ele o padroeiro de minha poesia. Aceitei e reconheci aquele dia como a sua palavra e o meu destino. E lhe dei a promessa do verso mais bonito, lhe dei um outro copo de tinto, lhe dei o meu respeito.
Antes de questionar o motivo de ter se banido do bando de Deus, contou ser um santo de hábitos exóticos, pouco condizentes com as regras divinas. Gostava de permabular pelas esquinas, de contar piadas, de namorar e de sempre estar ao lado dos que não temiam a criação. Sua intenção, quando ainda um anjo pequeno, era a de ser poeta. Esperou tantas eras pela autorização, mas a nomeação nunca vinha. E o que é pior: considerado distraído demais pelos santos mais adorados, acabava sempre preterido por José, Tomé, Expedito ou Benedito na limpeza diária das letras dos mandamentos recomendados. A missão a ele destinada foi a de guardião dos asteróides combalidos. Perdido, não conseguiu cumprir as expectativas. Após a primeira tentativa, quando ficou dias esperando a chegada de uma poeira estelar que fosse e nada apareceu, ele entendeu que a sua eternidade ou futuro valia tão somente a decisão de partir e não mais voltar ao sideral. (...)
- Meu santo, esteja sempre comigo. Faça-me cair em tentação e me convide para um turbilhão de chuva do interior. Não me valha com recato ou com recado sem remetente. Roube-me a semente para que eu lhe traga a rosa, parta sem rota sempre que necessário pedir perdão. Empreste-me a aceitação da mortalidade que eu o convenço da inutilidade de um para sempre sem cor. Dê-me dores, meu santo, mas sem traição. Dê-me adeus, mas sem redenção ou remorso. Que me falte o medo, que me falte a coragem, que me falte a metade imprescindível da vida de quem só sabe viver por inteiro. Deixe-me até sem verso, meu santo. Mas nunca me deixe sem poesia.
Essa prosa que fecha o livro (“A quatro mãos”) é sobre um dos meus maravilhosos momentos com São Damasceno, em que passei uma tarde inteira conversando com ele em pensamento na janela de casa. A prosa que abre o livro (“Uma espécie de anunciação”) é fruto de meu primeiro recital, que aconteceu em São Paulo, em 1999. Lembro de ter pensado: Como me apresentarei? Como falar quem sou? Ninguém me conhece. Aí a poesia me deu a resposta comentando o dia do meu nascimento:
No dia em que nasci, os jornais não noticiaram nada de mais. Nenhuma garota de Ipanema inspirou Vinícius ou Jobim, nenhum texto encantou Cacilda, nenhum silêncio levou Clarice à máquina de escrever. Bergman e Godard não se encontraram para um roteiro em comum, Bardot e Marylin acordaram anônimas em suas camas, Garbo não foi fotografada ao sair para beber uma cuba-libre. Ninguém notou que apenas o F, de fronteira, separava JK de JFK, ninguém duvidou de que Elvis era o rei, nem mesmo ouviu-se falar em um rock inédito de Bill Haley e Seus Cometas. (...)
Mas eu sei que, naquele dia, um objeto voador não-identificado - alguns juraram ser um zepelin de cartolina, outros um disco-voador de celofane - cruzou o céu da Tijuca, no Rio de Janeiro, por volta das 4 horas da tarde. E que, independentemente do que era, um balão de metal ou uma nave de palha espacial, o objeto subiu o mais alto que pôde, carregando em seu mais secreto compartimento três versos magos, quer dizer, três versos mágicos, encomendados à inspiração por um trovador que, dizem, abandonou o lar por desencanto, sem deixar o novo endereço para a ex-amada, para o santo protetor nem mesmo para Deus.
Desde então eu sei que aquele balaio de ágata voador - ou seria um meteoro de águas e plânctus brilhantes? -, que tanto necessitava de um destino, quer dizer, de um destinatário, fixou residência sobre a minha vida. Até hoje, 39 anos depois, por sorte ou bênção vez por outra o objeto pousa, sem que ninguém perceba e sem que eu ainda consiga defini-lo, no quintal da casa de minha poesia.
Eu e a designer Heliana Soneghet Pacheco passamos dois anos gestando o projeto gráfico do livro. A única coisa que eu sabia era que a maioria dos poemas teria que estar próxima e que teriam uns poucos solteiros, que precisavam se esparramar sozinhos pelas páginas. Também sabia que precisava de tecido para render a devida homenagem à minha avó e que os poemas inicial e final deveriam ter algum destaque.
De posse desses meus pedidos e necessidades, com suas mãos de costureira da beleza, Heliana teceu um projeto gráfico lindo, ousado, com muito branco nas páginas, e com a capa em patchwork: ela me devolveu, sob a forma de uma colcha de retalhos, toda a história da minha vida. A capa de cada um dos 500 exemplares recebeu uma combinação diferente de panos, seguindo a tradição involuntária, minha e de Heliana, de tentarmos dar a cada leitor o seu próprio livro.
Poemas casados foi lançado no dia 5 de dezembro de 2003, no Espaço Cultural Lugar Comum, em Botafogo (RJ). No final da noite, eu e meu irmão Paulo Corrêa, acompanhados dos músicos Marcelo Camargo e Luís Alberto Rocha Melo, fizemos uma pequena apresentação, uma prévia do que desaguaria no CD de poesia e música Sinais urbanos.
Nas noites em que o sono não vinha
era eu o advogado de toda a família
negociando o curto prazo com os fantasmas
que insistiam em surgir nas fechaduras
era eu o sábio de todo o edifício
percebendo a beleza na dor
para consolar a velhice dos mortos
era eu o síndico de toda a rua
mandando Deus se entender com o Diabo
na luta cotidiana pela gangorra do recreio
era eu o jardineiro de todo o bairro
regando com os olhos as pétalas de cada rosa
e o delírio de cada febre que eu cultivava
era eu o dono de toda a cidade
permitindo que o Cristo descesse os braços
e descansasse a obrigação de zelar pelo sonho alheio
era eu o vigia de todo o país
abrindo as asas sobre os telhados
para que a noite não parecesse tão desoladora.
Nas noites em que o sono não vinha
com minhas patas de anjo
eu já ensaiava cartas de amor ao mundo.
Palavras secas me atravessam a garganta
mar rasgado pelo fio afiado de um raio mudo.
A boca cede aos falsos galanteios da dor
e a língua é ponte do que não pode ficar.
Dou à luz bilhetes, versos e estrelas sem voz
entregues a desconhecidos viajantes.
Todas as casas do mundo são pátrias
Todos os homens do mundo são meus
mas nada me habita ou morre por mim.
Tudo que é tempo é silêncio
ou grito de pouco brilho e delírio.
A vida passa
galeria cotidiana de manhãs sem melodia.
Apenas um retrato
encontrado nos escombros do dia-a-dia
me consola.
E é por aquela imagem
do filho que nunca terei
que eu vivo.
Eram tantos lugares para habitar
e eu, menino, não conseguia escolher
um lar para me cobrir
um porto para me perder
uma pátria para me ferir.
Poderia ser a casa de meu pai
o esconderijo de minha mãe
qualquer quarto de hora ou hóspede
poderia me ter seu
morador de uma sombra ou hemisfério enluarado.
Mas tantos lugares não eram um.
Até o mar, que por mais mar que fosse, faltava
o aconchego de me caber.
Eu não cabia em nenhum castelo, em nenhuma ruína.
Até a ciranda, que por mais ciranda que fosse, faltava
o compasso de pertencer à roda.
Por isso, todos os lugares eram pouco
pouco mais que a dor de não saber
onde guardar os espantos e os brinquedos.
Foram necessários treze anos
para encontrar as chaves do paradeiro que nunca pára
e finalmente me tornar um inquilino fiel
da estranheza perfeita do quarto-e-sala da poesia.
Eu queria gostar de gatos
e mesmo dos ratos dos meus pesadelos.
Eu queria gostar de tecnologia
e mesmo da biologia que quase me manteve ginasial.
Mas dei de gostar dos galos
e mesmo dos halos mais obscuros.
Mas dei de gostar dos homens
e mesmo dos lobisomens menos atraentes do mundo.
Nada ao contrário
Tudo pelo contrário.
E então me faço
gato que desperta a manhã
computador que radiografa o esqueleto da lua.
Ou então me faço
galo que corteja telhados
homem que voa sem céu.
A poesia me permitiu o caos.
Eu não sabia que Roma era azul
nem que azul era o tom da aurora.
Não podia imaginar que se bebia azul no ar
ou que o azul se fazia chão para a poesia.
Sequer supunha azul a palavra confessada
quanto mais que o perdão se vestia de azul.
Não desconfiava que se morria de azul
para no azul novamente amanhecer.
Quem dera reconhecer azul toda saudade
ou que para o azul se convertia toda decência.
Eu não sabia que os seus olhos eram azuis
que de tão azuis, negros.
Não há mais tempo
para o peito ser a terra da desordem
nem para a saudade nela cravar
sua bandeira de retalhos roídos.
O sol já se pôs
a caminho
A lua já se deitou
entre nós
O que parecia fim é entardecer.
Os anos desistiram da tempestade
e oferecem no calmo azul
a chuva mansa da maturação.
Resta colher o que não morrerá.
As sementes vingaram.
O que seria fruto, sabor
O que seria pétala, frescor.
As folhas não reconhecem o vento do adeus.
A sombra não possui ossos
e ainda assim sustenta
corpos, costumes e convivências.
A sombra não possui rugas
e ainda assim tomba
costas, culpas e curvas.
A sombra descansa no breu
mas nunca dorme
A sombra é o cão que guarda
mas nunca rosna
A sombra não é geométrica verdade
A sombra não é amiga
A sombra não passa em roletas
A sombra não passa de uma memória exilada
A sombra só se veste com o sangue divino
A sombra só se despe em réquiem alheio
A sombra não vale a luz que a mantém
A sombra não vale o chão que pisa.
Eu já não possuo uma sombra.
O que se vê a me seguir nas calçadas
como numa estranha procissão de mudas beatas
é a alma, em seu constante e frenético movimento,
à cata da moldura exata para o nosso auto-retrato no mundo.
Não mais posso tocar
a textura dos sonhos
alinhavados no acaso de sua mão
distraída em meu colo noturno.
O tempo teceu-se esta colcha
retalhos de adeus e desconforto
remendados a olhos secos.
Hoje, o bordado desfaz-se fio a fio
nos lençóis desconhecidos do carinho alheio.