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Poemas Caseiros

Ficha Técnica

Rio de Janeiro, 2007

82 páginas, 80 poemas

Programação visual: Heliana Soneghet Pacheco

Editoração eletrônica: Paula Monteiro

Revisão: Marcelo Secron Bessa

Fotografia: Jackeline Nigri

Gráfica: Reproarte

Comentários do poeta

POEMAS CASEIROS: A HISTÓRIA DE QUANDO ENVELHECERMOS

A história de quando envelhercermos é o subtítulo do livro Poemas caseiros e resume com muita propriedade o porquê do livro. Um dia, em minha casa, lá pelos meados de 2002, tive a sensação de ser um velho senhor escrevendo, no escritório, poemas para a pessoa amada, que estaria na sala do apartamento. Essa sensação ficou em mim durante muitos dias e aí percebi que começava a nascer uma história e, mais tarde, vi que era um livro.

Poemas caseiros conta essa história de amor através de poesias que eu já havia escrito e de poesias especialmente criadas para o livro. Há um sentimento de casa e de outono que percorre cada página. Aparentemente, é um livro entristecido, meio desfolha, mas com o passar dos poemas fica claro que conta uma história de encontro, desencontro e, finalmente, de permanência, como se a trajetória percorrida fosse realmente apenas um caminho para chegar a um lugar previamente definido.

O poema inicial, de uma certa forma, traduz o espírito do livro, sendo uma introdução real à história.

CORPO E POESIA

este poema

amor maduro, duradouro

relíquia apurada dos anos.

Dói, mas pouco

ter que também nele admitir

o corpo cansado, vivido

especiaria estranha dos anos.

Antes de chegar

as canções do rádio o escondiam

entre versos e melodias -

pareciam gostar de minha espera.

Mas eu já sentia

a reconhecida respiração

o jeito caseiro de pensar o futuro.

Até que veio e cumpriu-se

o acordo orquestrado no acaso:

um só corpo.

Aprendemos a amá-lo, desprezá-lo

mas com ele estarmos

no passeio matinal e nas vertigens.

Este corpo que nos une

mesmo sono, métrica mesma

é o poema que nos acompanha

ertence a todos os livros

mas só decifrado por nós.

A poesia do corpo não admite o tempo.

Deixemo-na sempre à cabeceira, mas livre

para sair, entardecer onde sonhar

e voltar à casa no final de mais um dia

pedindo colo e juventude.

Além dos poemas de amor, o livro traz poesias dedicadas à convivência dentro de uma casa e uma particularidade: versos sobre objetos que coleciono, como imagens de santos (sem qualquer teor religioso, apenas estético). Há, também, uma minissérie, uma ruptura que aparece em dois momentos do livro: “Um diário para dois”. Um mesmo espaço em que os dois personagens centrais do livro escrevem, sem a ciência do outro, sobre a dificuldade de dizer adeus e a esperança de reencontrar. O que literalmente acontece, tendo no poema “Sobreviventes” a síntese de toda a história esculpida.

SOBREVIVENTES

Envelhecemos sem remorsos a cada dia.

Olho o que fomos e honro a nitidez das fotografias.

Reconheço os passos no mapa das considerações

e lembro onde os filhos foram entregues ao tempo.

Plena a verdade de que ficaram os cheiros

curtidos em vinhos que já não se fabricam

guardados nos potes de ouro maciço das lembranças.

Enfrento os velhos ventos do frio

ainda de mãos nos bolsos mas agora livres

a rescreverem letra por letra da história esculpida.

Não faltaram palavras de consolo ou fé

tudo foi dito ou abandonado na hora devida

e os degraus construídos sob as ordens do acaso.

Piso as folhas das árvores que conhecemos:

o barulho de vida pulsante me faz rir com prazer.

Provo a sabedoria de tanto saber o nada de todo dia

e a felicidade suprema de atingir a cor de não morrer.

Somos as chaves do que vinga e não pede vitrine

quer apenas descortinar a próxima curva.

O orgulho de não temer o realizado

O sabor de requentar a esperança

dons que soubemos viver sem prejudicar o andamento do mundo.

Sobreviventes de nossas próprias alegrias e limites

hoje comungamos o mérito da permanência.

Se existisse, o arrependimento daria lugar ao agradecimento.

Estrutura gráfica e lançamento

Como todos os meus demais livros, o design é assinado por Heliana Soneghet Pacheco, com quem gestei a cara e o corpo do livro por quase dois anos. Eu dizia para ela: “Precisa ter madeira, é uma casa”. E ela respondia: “Mas precisa também ter rosas”. Após algumas tentativas, chegamos à conclusão de que o livro poderia ter a capa de madeira, como uma porta, convidando o leitor a entrar nos poemas. Mais tarde, acabou evoluindo para uma caixa de madeira para abrigar também o livro Poemas simples – os dois foram lançados como uma só edição.

Mas por que uma só edição? Os livros acabaram nascendo praticamente juntos e eu não sabia qual lançar primeiro. Ambos tinham o amor como tema central e, um dia, assistindo à TV me deu um clique: têm que sair juntos, de alguma maneira próximos. E acabaram germinados, como irmãos. Ou como amantes (um leitor mais atento verá que um ou outro poema acabou pulando de um livro para o outro).

A capa é vermelha, porque a cor desse amor é essa, com letras vazadas em branco. O fundo rebaixado reproduz a renda branca que literalmente ampara os poemas que falam sobre os santos da casa. E como o livro conta uma história de longo percurso, Heliana decidiu usar um papel areia para as páginas de dentro. Quanto às rosas, ela passou a guardar, dentro de livros e durante três ou quatro anos, todas as flores que recebia de seu namorado. Essas pétalas foram coladas nas páginas de três poemas – os demais contam com flores já impressas no alto de cada página. Poemas caseiros carrega, e entrega ao leitor, pedaços vivos de minhas histórias de amor e da de Heliana.

O lançamento de Poemas caseiros / Poemas simples acontecerá no dia 2 de outubro de 2007, no Unibanco Artplex Livraria, em Botafogo (RJ). Na noite, acontecerá a leitura de poemas por pessoas diretamente ligadas à minha poesia e ao meu coração.

Poemas

O CANSADO MARINHEIRO

Todo fim de tarde é assim.

A porta da frente se abre

e ele chega com o mapa das águas nos olhos.

Senta-se o cansado marinheiro

e cumpre o costume de algo para beber

enquanto lê notícias de além-mar.

Passeia por portos e mensagens

sem perceber que mais uma vez

dou corda às suas cidades submersas

para rever a dança de deuses e fantasmas de plânctons.

Essa, a minha estranha conquista.

Depois já é muito tarde

para comigo dividir o verso salvo deste cotidiano naufrágio.

Deita-se o cansado marinheiro

espalhando seu corpo sobre o deserto insone de minhas horas.

Muito, muito tarde, mas nunca tarde demais

para novamente cobrir-lhe os sonhos

e recolher as conchas que acabam de cair

de sua mão adormecida.

DELICADEZA

Ainda dorme.

Comigo, à mesa, a sombra

mais bela que suja

mais minha que sua

outra vez presente.

Sirvo-lhe o café e a delicadeza

de uma manhã a mais.

DANÇA

Dança com os pés sobre os meus.

Deixa-me conduzir-te pelos salões

a descobrir novos continentes

onde possas atracar.

A vida é esta música, ouve

a enganar os demais com seu silêncio.

Dá-se a nós, e tão-somente

segredo de escutá-la sem repetição.

Valham-nos os descompassos

meros recomeços

da cantiga que se repete

no rádio de toda manhã.

Pousa teus pés sobre os meus, anda

sobremares dançaremos a chuva.

LÁGRIMAS E SEIVAS

Na cozinha

prepara o molho

impaciente com suas próprias mãos

a cortarem cebolas em minúsculas sementes.

Na sala

cúmplice calado

choro e floresço.

ITINERANTE MARIA DOS BRASILEIROS

Segue, casa em casa, muda procissão

poucos mas abençoados fiéis.

Aceita o trono que lhe dão

estante, cômoda, mesa de jantar.

Ilumina, absoluta mulher de gesso e ouro

ventre de milagres benditos.

Lá está

dona do invisível

rainha do lar

santa, santa, santa

amadrinhando filhos, plantas, bichos

em seus cotidianos e mistérios.

Por uma semana

mãe de cada esperança

esperança de cada pedido.

Quando todos dormem, clareia

a dúvida dos sonhos menos felizes

acolhe o que lhe parece triste

divide a graça do riso contido.

Dama das almas

senhora das redenções

maria, maria, maria

fingindo aprender o que já sabe.

Depois, sinceramente parte

em adeus tranqüilo e sem cortes

glória de saber deixar sem arrependimentos.

Quando chegar em minha porta

pedirei licença para recebê-la com flores.

Minha casa, em breve, seu jardim.

APARTE (IV)

Era uma vez um sol

que se imaginava lua.

Está decifrado o mistério

dos atrasos de todo dia.

VIGÍLIA

Seu corpo já voltou

e adormece cansado do mundo

no quarto que parece tão distante.

No sofá da sala

mantenho-me a postos

flutuante ante o abismo da madrugada.

Aqui ficarei

até o seu desejo voltar

pés descalços, sapatos na mão

e um pedido de perdão

enrolado no jornal do dia.

Isso não são horas de chegar

nem de pedir itinerários ou explicações.

Apago o último abajur

e recolho-me sem ler as manchetes.

A sua alma ou a minha

varre a casa em silêncio.

INCÓGNITA

No amor verdadeiro

a porta por onde se entra

nunca deve ser a mesma por onde se sai.

Tanto na chegada

Tanto na partida

há de haver singularidade.

O segredo da tranca de onde vim para ti

não será esquecido.

O endereço da casa para onde vou de ti

pode ser a dor de lá querer te encontrar.

TENTATIVA

Sob um céu alaranjado de fogo

montado em imensas pernas-de-pau

ele ia mar adentro

sem destino ou medo

a esbarrar na lua

sem olhar pra trás

a derrubar estrelas

sem querer reconhecer

que a face viva

no aquário do horizonte que o engoliu

era a minha.

Há anos tento desenhar

o sentimento de quando ele partiu.

SOBREVIVENTES

Envelhecemos sem remorsos a cada dia.

Olho o que fomos e honro a nitidez das fotografias.

Reconheço os passos no mapa das considerações

e lembro onde os filhos foram entregues ao tempo.

Plena a verdade de que ficaram os cheiros

curtidos em vinhos que já não se fabricam

guardados nos potes de ouro maciço das lembranças.

Enfrento os velhos ventos do frio

ainda de mãos nos bolsos mas agora livres

a rescreverem letra por letra da história esculpida.

Não faltaram palavras de consolo ou fé

tudo foi dito ou abandonado na hora devida

e os degraus construídos sob as ordens do acaso.

Piso as folhas das árvores que conhecemos:

o barulho de vida pulsante me faz rir com prazer.

Provo a sabedoria de tanto saber o nada de todo dia

e a felicidade suprema de atingir a cor de não morrer.

Somos as chaves do que vinga e não pede vitrine

quer apenas descortinar a próxima curva.

O orgulho de não temer o realizado

O sabor de requentar a esperança

dons que soubemos viver sem prejudicar o andamento do mundo.

Sobreviventes de nossas próprias alegrias e limites

hoje comungamos o mérito da permanência.

Se existisse, o arrependimento daria lugar ao agradecimento.

ORAÇÃO DE TODO DIA

Sem você

a vida faria todos os sentidos

mas eu não poderia dela duvidar

e ainda assim querer vivê-la ao seu lado.

Sem você

os frutos vingariam

mas não haveria a beleza sem remorsos

de ver o cacho de uva morrer de velhice sobre a mesa.

Sem você

o prazer também seria completo

mas não me daria a glória de provocar

o pudor dos deuses mais recatados.

Sem você

os erros não deixariam de acontecer

mas eu não teria a chance de saber

que o perdão vence a distância.

Sem você

o tempo seria como sempre foi

mas em nada me interessariam

as horas que gostamos de perder diante do nada.

Por isso, toda noite antes de fazê-lo dormir

sem saber rezar eu rezo

duas ave-marias ao pai nosso

para que a eternidade seja mesmo o nosso dia a dia.