Rio de Janeiro, 2010
136 páginas, 129 poemas
Programação visual: Heliana Soneghet Pacheco
Produção gráfica: Sandra Amaral
Fotografias: Anna Agonigi, Erik Barros Pinto, Jackeline Nigri, Janine Bergmann e Luciana Kamel
Gráficas: Stampa e Reproarte
Já no final do processo de criação e publicação dos livros geminados Poemas caseiros e Poemas simples, em 2007, um sentimento um pouco inquietante passou a tomar conta de mim. Muito em breve, em 2010, eu completaria 50 anos e achei que deveria marcar a data com o lançamento de um novo livro. Mas que espírito, sensação ou sentimento a poesia poderia traduzir, para mim, em relação aos meus 50 anos?
A resposta veio rápida e clara: o silêncio. Em todos estes anos - mais de poesia que de vida propriamente dita -, o que mais me tocou foi o tempo que ganhei, e não perdi, ao contemplar o que quer que fosse. Portanto, a dimensão do silêncio, em mim, nunca foi ausência, muito pelo contrário. Silêncio é a possibilidade da observação. Lembro bem que, durante o processo de criação e seleção inicial dos poemas para o livro, assisti a uma entrevista de Dorival Caymmi em que garantia que os baianos não são preguiçosos, mas contemplativos. Pensei: é isso. E a partir dali não havia mais dúvida. “Silenciário” estava a caminho.
Para compor o livro, busquei poemas que tivessem a ver com esse sentimento de observação e escrevi alguns que tentaram traduzi-lo. Foi uma viagem desafiadora e bela no tempo e nos meus cadernos. Reencontrei poemas que, mesmo envelhecidos, ainda davam conta do que eu queria dizer. Aliás, devo confessar que dei preferência a eles, em detrimento de poemas atuais e, provavelmente, melhores. Mas havia uma dedicação, uma liberdade de dor e alegria tão grandes nos antigos que optei por eles. Com certeza, deve haver alguém que, me lendo agora, pensará: louco. A poesia, meus caros, é feito de escolhas, às vezes cegas.
Logo deslumbrei, também, quais eram as dimensões do silêncio que eu queria apresentar: pátria, existência, natureza e amor. Em pátria, a minha difícil relação com o Brasil (a poesia se vê do mundo) e o registro dos lugares por onde passei ou imaginei ter passado. Nessa parte, destaco, não em termos de qualidade, mas de afeto, os dois poemas para Araras, cidade serrana do Rio de Janeiro, lugar a quem o livro é dedicado. Meu porto seguro e perdido. Em existência, poemas que retratassem o espanto calado da infância, o bom e o mau silêncios vividos. Em natureza, o meu amor profundo pelas árvores que, melhor do que qualquer manifestação da natureza (incluindo o homem), compreende e reproduz o silêncio em sombras e frutos. Em amor, versos de encontro, desencontro, saudade e, principalmente, espera. O silêncio é espera.
Quando o livro estava quase todo montado, senti falta de ter algo que remetesse diretamente ao fio condutor de toda essa história, os 50 anos. Esperei até que o silêncio me propôs – e , claro, aceitei – o “Poema prévio para os meus próximos 50 anos”. Como o poema tinha um tom muito diferente do resto do livro, o coloquei como a primeira orelha. A segunda, que traz um poema aparentemente enigmático (¨Rito”), fala do passado mas mira o futuro.
Mais uma vez, a designer Heliana Soneghet Pacheco me brindou com um projeto gráfico maravilhoso, que contou comigo apenas na definição da cor da capa, dourado, para comemorar em grande estilo as minhas bodas de ouro com a vida. No projeto gráfico, o luxo de contar com títulos dos poemas montados um a um e o desafio de colar estrelas adesivas (16.000 exemplares) na edição. Também tive outra participação no processo visual do livro, é verdade: pedi à Heliana que estudasse a possibilidade de utilizar fotografias (não impressas, mas reproduzidas em papel mesmo) nas passagens que marcavam as dimensões do silêncio. Eu sentia a necessidade de traduzir visualmente essas dimensões e, para isso, lembrei dos fotógrafos que, em algum momento da vida, manifestaram o desejo de partilhar um livro de fotos e poemas comigo. Havia chegado a hora. Assim, agradeço ao talento e à amizade dos fotógrafos Anna Agonigi, Jackeline Nigri, Luciana Kamel, Janine Bergmann e Erik Barros Pinto.
O lançamentyo aconteceu no dia 19 de abril de 2010, nos Arcos da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema (RJ), onde tive outros grandes momentos da minha vida poética, como o lançamento do livro O diário do trapezista cego (1999) e o do recital Um diário para dois (2008).
Naquele dia
em que palavras se enrolavam
em minha língua
eu não conseguia dizer
eu te amo largo.
Naquele dia em que clamei por justiça
e como num milagre ouvi
eu te amo grande
fui o dia mais feliz da minha vida.
Não guardo lágrimas
para engrandecer os amores perdidos
nem a camisola de batismo
para saudar o filho que não veio.
Ainda que não saiba
já posso sorrir à vida.
Conheço-lhe o útero, o ventre
os primeiros passos
os intermináveis recomeços.
Se daqui a 50 anos
o espelho me apresentar
o homem que agora sou
espero reconhecê-lo
naquele menino que,
mesmo povoado por labirintos alheios,
sabia sorrir aos letreiros luminosos do cinema
que garantiam sempre haver uma saída.
À noite, enquanto todos dormem
cubro os solos com palha
desenho flores e casas ribeirinhas
afago iaras e curupiras à beira-mar
ajeito a fantasia de bate-bola das estrelas
sopro nas árvores as franjas palmeiras
escovo as costas caboclas das montanhas.
Na quietude de cirandas sonhadas
corôo tupã deus do universo
em trono de lua enfeitada por bambus e bananeiras.
Ainda não é tarde para amar este país.
Filho adotado pelo silêncio
e pelas horas pesadas que não passam,
nada direi.
Aqui permanecerei quieto
gado esperando o dia findar
para sem sinos voltar ao pasto do dono.
Conhecerei as palavras que mudas reinam
e com elas erguerei cidades e sítios.
Aprenderei o mistério de calar
ainda que um breve canto pareça necessário.
Mais olhos que lábios, mais contemplação que luta
o valor reconhecido da orquestra em repouso
o respeito do inseto que sem zumbido toca a flor.
Espanto do menino que com a mão à boca
recebe o brinquedo desejado
e corre a escondê-lo, em cuidados, sob a cama.
Tempo sem nome, tecido pelo prazer da agulha no pano
a rezar, em copas, o encontro.
Ao coração pedirei licença para somente ouvir
o quase imperceptível murmúrio da saudade.
Saberei te amar
perdida e silenciosamente
na espera.
As fábricas não têm mais apitos
muito menos musa inspiradora ou poesia.
Até de nome mudaram: organizações.
O que era folga, hoje é hora extra
férias significam demissão.
Os produtos não estão mais
nas melhores lojas do ramo
mas falsificados pelas esquinas.
Os trabalhadores sobreviventes
dividem a marmita com robôs
e já aposentaram o velho orgulho
ou contabilizar mais um ano de casa.
As fábricas que às seis em ponto
devolviam vizinhos cansados mas felizes
sobrevivem apenas na liberdade de quem
ainda ouve vinis e se emociona com chiados.
Quando eu puder cuidar do tempo
sendo o deus de meu pequeno quintal
é lá, nas terras de minha última infância,
que quero quarar as boas lembranças
lavar com calma algumas mágoas
ver crescer com saúde e rio os filhos que não tive
perceber brotar um verso ou outro
junto ao pé do abacateiro.
E nada de plantar lamentos, colher solidões
somente ficar lado a lado com o tempo
com o meu tempo e percebê-lo
no gerânio que me der bom-dia
no bem-te-vi que pousar para colorir o telhado
nas longas horas de silêncio agasalhado, café e bolo-de-nada.
É lá, nas terras sagradas de minha adolescência
que poderei novamente estar jovem quando quiser
à tarde subir a montanha com os olhos
deixá-los no topo para que cuidem do vale ao anoitecer
e ser feliz por apenas um instante:
a felicidade cabe no rápido mas definitivo passo de voltar
da porta do abismo para a varanda de casa.
Queimem as honrarias, arranhem as medalhas.
De que vale uma conquista com prazo de validade?
Todos os ideais, hoje, não passam de idéias particulares
em que mais-de-um se mantém singular.
Esquecemos o real valor das individualidades
para em nome do desrespeito brindarmos
os nossos egoísmos.
Criticamos as obras ao vê-las com olhos cansados
porque invejamos não ter como criá-las.
Desafiamos os livros ao lê-los pela metade
porque julgarmos ter o que escrever.
Abrimos as janelas e trocamos tiros, não bom-dia.
No lugar de justiça, encontramos justificativas
e absolvições para os que matam.
Mais do que o rumo, perdemos o lar
e a chance de nos tornarmos homens verdadeiros.
Homens que para alimentarem seus filhos
não precisariam roubar outros homens.
Homens que para defenderem suas posições
não precisariam subjugar outros homens.
A solidariedade que resta
sobrevive nas migalhas dos que ainda crêem
se não sabem no quê, garantem no quando.
O tempo talvez seja a única salvação possível,
até os discos voadores nos abandonaram.
Fizemos do planeta um quintal sujo
e nos orgulhamos de mais e mais emporcalhá-lo
com substâncias e substantivos nocivos.
Um dia entenderemos a nobreza de uma árvore?
Por um só dia conseguiremos
não ser nossos próprios inimigos?
Quantas horas os grandes líderes agüentariam
se sentar à mesma mesa sem nada poderem vender?
Para eles peço um minuto de silêncio.
Para nós outros, um minuto de perdão.
Este poema é um gesto também inútil
já que não possui propostas
tão-somente o propósito de ser ouvido.
Quem sabe por alguém de coração-limpo traduzido
a tempo de não merecer o título de
imundo pensamento desesperançado.
Quando perguntam
por que não tive filhos
olho em silêncio
para todas as árvores do mundo.
E sorrimos.
A sombra é o silêncio da árvore.