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Sinais Urbanos

Ficha Técnica

CD em parceria com Paulo Corrêa 13 faixas

Canções (letra e música): Paulo Corrêa

Poemas: Jacinto Fabio Corrêa

Programação visual e ilustrações: Pablo Esdras

Fotografias: Anna Agonigi

Gráfica: Reproarte

Comentários do poeta

SINAIS URBANOS: DIÁLOGO AMOROSO DE POESIA E MÚSICA

Eu tinha um sonho antigo e mais secreto que antigo: deixar registrada, de alguma forma, a relação poética que tenho com meu irmão, o cantor e compositor Paulo Corrêa. Apesar de termos poesias bastante diferentes, eu sentia que, em determinados momentos, a minha literatura e a música dele se encontram, ainda que às escondidas, para um café ou para a troca de segredos.

O projeto do CD e do espetáculo de música e poesia Sinais urbanos nasceu sem querer. Quando estava montando o roteiro de meu primeiro recital solo Sete senhas (2002) pedi ao Paulo para compor algumas trilhas. Ficaram tão incrivelmente perfeitas – tocavam o que eu queria dizer – que estendi o pensamento e o convite para que ele participe de dois números comigo. Ele aceitou e foi um encontro muito feliz para mim.

No ano seguinte, quando publiquei o livro Poemas casados (2003), tive a idéia de fazer um pequeno espetáculo conjunto com o Paulo no dia do lançamento. Foi aí que aconteceu, de fato, o desejo de fazer um trabalho maior que culminou com o projeto do CD. Para montar o roteiro, fiz uma viagem bastante particular nos meus livros, à luz das canções que ele demonstrou vontade de cantar e vice-versa. Fui buscar "Trapezista" e "Pedaços I" no meu primeiro livro (Entre dois invernos, 1989), assim como muitos poemas, como "Reflexos" e "Altamaré" no meu mais recente livro da época Poemas casados. A seguir, um dos trechos do CD e do espetáculo (poesias "Contínua" e "Arquibancada" com a canção "O canto"):

CONTÍNUA

A sombra não possui ossos

e ainda assim sustenta

corpos, costumes e convivências.

A sombra não possui rugas

ainda assim tomba

e

costas, culpas e curvas.

A sombra descansa no breu

mas nunca dorme

A sombra é o cão que guarda

mas nunca rosna

A sombra não é geométrica verdade

A sombra não é amiga

A sombra não passa em roletas

A sombra não passa de uma memória exilada

A sombra só se veste com o sangue divino

A sombra só se despe em réquiem alheio

A sombra não vale a luz que a mantém

A sombra não vale o chão que pisa.

Eu já não possuo uma sombra.

O que se vê a me seguir nas calçadas

como numa estranha procissão de mudas beatas

é a alma, em seu constante e frenético movimento,

à cata da moldura exata para o nosso auto-retrato no mundo.

O CANTO (Paulo Corrêa)

Eu canto pros malditos, canto pros benditos

Canto porque eu não sei rir

Eu canto pros estranhos de todos os cantos

E isso é o que me faz ir

(mesmo que não me escutem)

Minha garganta busca a palavra justa

que explique o que eu teimo em ver

O que nasce de nós

sagrado ou profano não importa, nasce de nós

Por que nasce de nós tanta desgraça, será que é da raça?

Por que nasce de nós, tanta desgraça

que vaga e devasta, estamos sós?

Do Planalto Central, sinais de fumaça avisam

que algo cresceu

no que há de humano em nós

os velhos selvagens de peles tão claras

O que há de humano em nós

além da meta de se conseguir ter um carro mais veloz

pra sair correndo das crianças dos faróis?

Onde anda Deus, onde anda Deus?

Busca um milagre por todos os cantos?

Onde anda Deus, onde anda Deus?

Joga videogame com um dos seus santos?

Urbanos samurais com seus bandos bêbados

dominam as ruas

rebentos de Xangai, tupiniquins,

Bruce Lees de almas sujas

Na TV, pedem paz

nos intervalos de imagens tão duras

E os filhos dos lixões

diariamente reciclam essa usura.

Onde anda Deus, onde anda Deus?

Busca um milagre por todos os cantos?

Onde anda Deus, onde anda Deus?

Joga videogame com um dos seus santos?

Há tantos cantos não importam quantos

sagrados, pagãos ou mesmo

os cantos das paredes com seus santos

tristes, tímidos, tementes

e eu insisto perguntando

em qual canto do mundo é que se esconde Deus?

Meu canto às vezes dorme em paz

Às vezes nasce e se refaz no caos.

ARQUIBANCADA

Os sinos e os apitos estão mudos

As alegorias da fé, cegas.

As crianças desfilam

adormecidas e fantasiadas de Deus na calçada.

Até que aplausos secos e rápidos as atingem

e elas percebem sem harmonia ou enredo

os próprios corpos pendurados no cordão de isolamento.

Marionetes crucificados nos meios fios do nada.

O sangue é passarela

O ritmo, câmera lenta e distante.

E a Candelária, alegórico carro estanque, se apaga

para o carnaval de lanças (perfume nenhum)

que a cidade, atravessada, finge brincar.

O casamento das músicas e das canções (todas com letra e música de autoria do Paulo) foi um processo muito natural e contou com a colaboração do cineasta e amigo em comum Luís Alberto Rocha Melo. Depois do trabalho pronto foi que percebi que, mesmo com todas as diferenças que a minha poesia e a do Paulo têm, havia algo muito entrosado, como se tivesse sido feito para que o encontro se desse. Para mim, o CD e o espetáculo Sinais urbanos, título de uma das canções do Paulo, foram a realização de um desejo de fã que tem a oportunidade de estar ao lado do artista que admira.

Em uma das reuniões para a montagem do roteiro final, comentei com o Paulo que tinha acabado de escrever um texto sobre o meu nascimento e a minha relação com a palavra ("Certidão"), com o qual gostaria de abrir o CD e o espetáculo. Para nosso espanto, a coincidência: ele estava finalizando uma canção sobre o mesmo tema, que acabou também sendo batizada de "Certidão".

Tirando a poesia "Certidão", só há outros dois textos inéditos meus "Colagem" e "Bilhete para o amor que se pensava perfeito". Em termos de música, além de "Certidão", nunca haviam sido gravadas "O trapezista" e "O acrobata" (feitas pelo Paulo para o vídeo "O trapezista", vídeo de Luís Alberto Rocha Melo baseado no livro "O diário do trapezista cego"), "Mais uma dor", "O canto", "A canção do poema", "A canção e a hora", "Nenhum detalhe", "Bem-vinda" e "Confesso".

Estrutura gráfica e lançamento

Convidamos o designer Pablo Esdras para fazer o projeto gráfico do CD. Depois de algumas tentativas – período em que dscobrimos ser necessário um subtítulo para o projeto, Itinerário poético-musical dos errantes -, o Paulo lembrou uma série de desenhos em preto e branco criados pelo Pablo para meu recital solo Sete senhas. Na verdade, aquelas ilustrações sintetizavam todo o processo e eram testemunhas oculares do início de tudo: estavam no palco quando eu e Paulo nos apresentamos juntos pela primeira vez. Os desenhos são líricos, inquietantes, extremamente criativos e traduziram de forma bastante poética o que queríamos dizer com Sinais urbanos.

O lançamento do CD e do espetáculo aconteceu no dia 6 de setembro de 2005, no Teatro Café Arena, em Copacabana (RJ), e contou com a participação dos músicos Luís Alberto Rocha Melo, Camila Rosenbrock e Renato Bocão.

Poemas

CERTIDÃO

Nasci de parto sem grito, porto quieto

de quem recebi um corpo de tempestades comuns

nenhuma enxurrada ou inundação

nenhum estouro de manada recolhida ao pasto.

Nada pedi ao ser parido

brinde de boas-vindas

promessa de batismo

absolutamente nada

a não ser o direito de recusar

o sobrenome do sexo que me dariam.

Logo no meu primeiro dia de vida engravidei-me

da mais inexpressiva e transparente flor da cidade

para que minha alma pudesse

abortar-se vidro e quebrar-se cristal

em requintes de beleza cruel e enternecida.

Eu e minhas pétalas de gude

que brilham por qualquer arremedo de luz.

O deus de quando vim ao mundo

não me ensinou a andar

tinha as pernas quebradas

os ossos de carvalho apodrecido

mas um bom coração:

deu-me um destino

que por intuição transformei em palavras

de gosto duvidoso mas verdadeiras

ametistas de minha glória e fracasso

colhidas nos parapeitos dos automóveis.

Passei do sonho de um nascimento pomposo

para o cotidiano de tarefas e resultados concretos

mas nunca deixei de amar com entrega e saúde

o que me valesse.

Se muitos me fizeram de alimento aos abismos

muitos outros desenharam-me asas.

Eu e meus vôos

que conquistam e bancarroteiam paixões ancestrais.

Sou assim um homem simples de nascença

cuja única ambição é ter uma janela, não uma casa,

de frente para um mar de avencas

onde eu possa me afogar

quando necessário morrer para salvá-las.

Cumpro-me

metade feto metade esfinge

metade pai metade filho

no carrossel das diversões e tragédias humanas

que diariamente renascem de minhas mãos para o mundo.

AUTENTICAÇÃO

Minha memória, pouco mais que passageira, esquece

Flutuo entre nadas e notícias que chegam.

Onde faço, nada construo

como casa arquitetada no vento

ninho flutuante de um joão-de-barro de aço.

Olho o mundo com olhos atentos

e o que consigo ver engulo com avidez.

O futuro, ao contrário do que poderiam imaginar, já me atrai

Tecnologia de ponta, modernidade, meu próprio desejo, tudo

num gradual crescimento espantado

(Perdoem: preciso crer que a vida é possível).

Esta é uma carta de intenções

promessa de compra e venda

acordo de trocas e segredos

comércio e generosidade.

Sou um cyborg ultrapassado, atração mambembe do circo

que pisa o picadeiro com flores vivas entre os ganchos.

Aceitem-nas. São sinceras. E flores.

Os anúncios na TV me fazem parar:

cigarros que não fumo

automóveis que não dirijo

mulheres que não amo

tudo passa

o que era para ficar também se vai.

Algum de vocês me ouve?

Não. Desligo a voz do aparelho,

mantenho as imagens acordadas

e reparo o silêncio pesado do apartamento.

Meu, este silêncio de posses

e me preparo para abençoá-lo e bebê-lo

porque aprendi que o filho menos querido

deve ser o mais amado.

Se algum de vocês me ouve

por favor também feche os olhos.

O estranho sou eu:

louco que não grita

viciado que não se droga

contestador que não briga.

Na esquina, cumprimentam-me em nome de alguém

Já não respondo.

Direito à contradição conquistado

torno-me máquina de última geração,

dando-me ao luxo de um HD absolutamente vazio

e sem qualquer tipo de possibilidade de depósito.

Nem mais amores

Nem mais rancores.

Espírito de aço feito às pressas

e sem certificado de garantia.

Louca e viciadamente contesto em silêncio.

A vizinhança, pouca mais que esclarecida,

comenta o que nem por um instante entende.

REFLEXOS

Labirintos de tempo

Eis a rosa do dia

Eis a reza de todo dia

poesia mutilada pelo excesso.

Espírito Santo e o Credo da Cruz

Espírito Canto e o Medo da Cruz

como sou herege sem perceber.

Danifico a imagem do santo

Danifico a imagem da cruz

Solidifico desejos proibidos.

Se tudo que se tem me permite

Se tudo que se permite me tem

então tudo a que me proíbem, invento.

Sou escada sem degraus uniformes

Sou escada de degraus paralelos

e o céu é tão logo ali.

As portas parecem sempre trancadas.

Meu amor possui as chaves mas teme o conhecimento

Meu amor possui o espírito livre mas preso a regras.

Estranha metade esta minha.

Dorme sem camisolas ou grilhões

Dorme sem pijamas mas com sonhos

para toda noite sonhar com o passado.

Sinto ciúmes e dores estrangeiras

Sinto pela falta de nexo e futuro

a me condenar à hora que apenas passa.

Mais uma vez começa a partir e eu a deixar que parta

Mais uma vez começo a fazer malas e maldições ao destino.

Dói perder uma certeza, mesmo que passageira.

O amor só me cabe assim

O amor só me quer assim

dor de fazer o mundo novamente nascer.

Minha poesia sempre se faz de primeira pessoa

Sou a própria pessoa que hoje me ignora

Sou a minha própria sombra, então.

A tarde concretiza o domingo e temo morrer de amor

Como sei morrer de amor, Deus

Como sei partilhar natais com fantasmas

no mais puro silêncio das taças adormecidas.

Não quero mais chamá-lo de meu Deus

Não quero mais parentesco

sequer com sua alma de silicone.

Deus é agora travesti sem glamour

Deus é agora anjo sem asa

sexo de fêmea e macho num só corpo deserto de desejo.

Deus é apenas o corpo que deserto

Deus é apenas o desejo que sinto.

Meu amor é a rosa e a última reza do dia.

POEMA DE MADRI

Madri me pede olhos felizes.

Não posso.

Dou-lhe quase silêncio

a gemer em sua honra.

A cidade amanheci morta

para horas ou séculos depois

vê-la nascer noturna e iluminada.

Madri tem de mim a poesia mutilada

roçando no pouco ar

a minha dor estrangeira

numa terra sem mar

a chorar arcos, orvalhos e frio.

Fora de mim não há latidos ou exílios

tudo parece caber nos jardins da memória.

Na rua ninguém segue

o meu cortejo de sangue coagulado em tons de escarlate

porque ninguém sabe

o que é perder mortos e enterrar monumentos.

Cega e triste Madri.

POEMA PORTUGUÊS (TRECHOS)

Esta canção

que não mais ouvirei

é um fado.

Não se escuta

o mesmo fado

duas vezes na vida.

Se um dia eu reconhecer

esta chorosa melodia

estarei finalmente

compondo uma dor.

A mágoa que não cabe num fado

não é uma mágoa.

É apenas um espanto disfarçado de dor.

ALTAMARÉ

O amor sempre me exigiu incoerências.

Nos portos onde quis trocar a alma

compravam corpos e nem era preciso morrer.

Mas só de teimoso eu morria

para acordar em navio sem mar

e jurar ter aprendido a lição:

só se morre de dor.

Mas só de teimoso eu desaprendia

para viver em mar sem navio

e acreditar ser possível morrer de amor

sem precisar de leme, bandeira ou direção.

O farol ainda pisca à praia sete vezes

desejando o pescador que nunca viu.

Ele crê no encontro que não acontecerá

e resiste a maremotos sem destruição, a calmarias sem paz.

Que não entendam meus sinais

eu nunca peço socorro, apenas companhia.

BILHETE PARA O AMOR QUE SE PENSAVA PERFEITO

Você tinha razão.

Muita coisa a ser mudada.

Corpo largado, beijo descuidado

Sem falar nos sonhos, todos ultrapassados

e nos desejos quase sempre mal-educados.

Mas eram os meus desejos, meu amor.

Era preciso mais gel, menos céu

mais ousadia, menos poesia

e um tanto de alquimia

para satisfazer o que eu nem conhecia.

Eu apenas sentia, meu amor.

Sugestões aceitas

aqui estou, um ser humano transformado

praticamente sem passado

sem tanta teimosia, cheio de tecnologia

ex-fumante com upgrade em amante.

Eu aprendi o que não se aprende, meu amor.

Troquei de manta, de mantra

de igreja, de delicadeza

como você sempre quis

mudo de saudade, mas feliz

repleto de rimas pobres, mas cortês

e pronto para fazer um filho a cada mês.

Afinal, era preciso vencer até o que a natureza não permite:

não havia lei ou limite.

A única lei era respeitar o limite, meu amor.

Estava mesmo tudo errado

O velho e bom senso era seu

os pingüins de geladeira, meus

e o deus que criei era muito tendencioso

ora arrogante ora pretensioso

verdadeira cruz que não servia nem para decorar o vazio.

Mas era o deus que não nos deixava morrer, meu amor.

Realmente era preciso ser mais polido como homem

moderado com a fome

e não ter além de um coração.

Você tinha mesmo toda razão

aliás, isso foi o que nunca faltou

até nas horas em que bastava chorar.

Pena só agora eu ser ou star o que você tanto queria

mas infelizmente, meu amor

o tempo da sua sessão acabou.

Ah sim

como você mesmo dizia

não se pode perder tempo

com a crise mundial

com a fome nacional

nem com os olhos tristes daquele menino de Nepal.

O que importa é não se importar

com pátrias, dilacerações ou tormentos

Assim, francesinhas ou brasileirinhas

eu eliminei todas as baratinhas do apartamento.

COLAGEM

“Prepare-se, o caminho é longo”, disseram antes de eu sair de casa. Por isso, ignoro tramas e acordos suspeitos, não tecendo compromissos sequer com o que encontro de melhor. Me permito uma liberdade estranha e vulgar, exercício de um tanto da dor, acrobacia de um esforço sem tamanho.

Tudo o que não vivi já não existe. Me enganei ao pensar que voltaria para onde parti: só se retorna ao que nunca se abandonou. Eu que a tantos deixei de amar sem devassidão, que a tantos deixei de odiar sem respeito. Em memória de todos que matei ou consenti viver, eu sigo, acreditando em discos voadores que chegam do mar, em réplicas autênticas de monumentos, em fantasmas que habitam os bueiros da cidade, em loucos saudáveis que cantam sozinhos pelas ruas; em livros de frases feitas para mãos que não querem ler mas rescrever o destino das palavras.

Para minhas mãos, não basta rastrear o nascimento ou o suicídio dos versos. Elas querem cuidar do infinito e de sua plantação de luas, querem fazer do cotão de poeira um planeta de estrelas. Cometo o mesmo pecado de todo dia: o excesso das alegrias plenas, o que me vale castigos e penitências a cumprir. Mas como excomungado reinvento novas alegrias plenas para viver e faço do dia-a-dia meu permanente carnaval, em fantasia de terno e gravata, mas com abotoadoras de pirilampos. Eu tenho sede do tanto, mesmo que o tanto não passe de um copo de água roubado do aquário da sala ou da limpeza, de hora em hora, das asas guardadas no armário do quarto de dormir.

Nunca sei ao certo a hora de partir da plataforma dos trapézios e dos portos. É cego, mas bonito de se ver, o meu ensaio cotidiano para despistar a felicidade. Preparativos para o salto. Um passo à frente. Vento leve. Impulso. A um passo do nada, eu vôo.