Rio de Janeiro, 1992
116 páginas, 85 poemas
Programação visual: Heliana Soneghet Pacheco
Coordenação editorial: Cecilia Leal
Editoração eletrônica: Hares
Trechos da canção introdutória “Sinais urbanos”: Paulo Corrêa
Fotografia: Anna Agonigi
Gráfica: Reproarte
Jogos urbanos, lançado em 1992, foi montado simultaneamente a Cenas nuas, em 1987. A idéia que costura todo o livro é a de um viajante que divide a sua vida em sete paragens fundamentais: O vale, A cidade, A confraria, O encontro, O cinema, O deus e A literatura. Em todas essas paragens, descrevo personagens que me foram marcantes.
Mas antes de apresentar as paragens, é preciso dizer que Jogos urbanos, apesar de ter sido o terceiro publicado, foi meu primeiro livro de poesias mais elaborado. Fiz de propósito: queria mostrar que minha poesia podia aliar emoção a uma certa elaboração formal. Senti necessidade de mostrar que eu podia contar uma história através do formato mais tradicional da poesia, sem ter que abandonar o espírito tão maravilhoso da prosa.
O vale são poemas de memória, infância, sonho e adolescência. São registros de minhas férias de fim e de meio de ano sempre passadas no sítio de minha avó em Araras, Petrópolis (RJ). Eu era – e ainda sou – louco por lá. É o lugar do meu afeto, da minha lembrança, da minha verdadeira construção poética. Araras cheira a mistério, a fantasia, a discos voadores, a sonhos guardados em caixas de sapato no alto dos armários.
Minha identificação com o local vai muito além da relação familiar: o sítio reunia sempre todos os filhos de minha avó, noras, genros, netos e amigos. Mas o que me fascinava mesmo eram a beleza e a possibilidade de mistério de lá. Então, os poemas falam do rio, das montanhas, das lendas que eu criava para passar o tempo, da infância que começava a me abandonar, da difícil relação com a família.
A cidade é a chegada do personagem ao cenário urbano. Os poemas falam da estranheza e da atração que eu tinha em relação à configuração das cidades, da minha simpatia e do meu medo pelo Rio de Janeiro. É nessa paragem em que o título do livro se apóia: dois poemas, "Jogos urbanos (I)" e "Jogos urbanos (II)", desenham personagens que mesclam neurose e fascínio, solidão e esperança de maneiras dramáticas. É a cidade apresentada por meus olhos, pelas minhas dores, pelas minhas expectativas ou esperanças. O poema "Antropofagicamente" sintetiza essa paragem e o próprio livro:
(...) Os canais entupidos da cidade
levam, inclusive, corpos de cães mortos.
Como é feio o corpo morto de tudo
que era vivo.
Ser fantasma é não ter cheiro
pouca ou nenhuma vantagem:
também é não ter prazer (...)
(...) O lobo que há em mim
me abre feridas na pele.
Secreta antropofagia.
Curo tudo com iodo e futuro (...)
A confraria são os encontros do personagem na cidade. São minicontos em forma de versos. Acho todos os personagens apaixonantes: Ana e Carolina e seu amor desesperado, a doce solidão de Seu Alfredo e as moças dos Correios, a revolução monocórdia de Domênica, os desejos e amores plurais de Maria Alice.
O encontro é uma história de amor vivida pelo personagem. São poemas sobre um grande amor que vivi, registrados quase em sua maioria na hora da partida. São extremamente dolorosos e densos. Lindos na dor que lhes coube dividir comigo.
Alinhavo a roupa esquecida.
A casa deve permanecer em ordem.
O cinema é a porta de entrada do personagem no mundo da arte. Os poemas falam dos filmes que vi, da aversão e excitação que o cinema exerce em mim. Essa paragem é, também, uma extensão de O encontro. Muitos dos poemas falam de um amor de “cenas de ciúmes cinematográficos”.
O deus é a opinião do personagem sobre Deus e seu quintal: a arte como um estado atemporal, acima de tempo e espaço. Essa paragem confirma a minha infinita atração e a minha temporária repulsa por Deus.
A literatura é a paragem de encontro final do personagem. É a estação onde ele desce para ficar. São os poemas em que teço elogios rasgados à palavra, à poesia, à possibilidade de tê-la como caminho e corpo. O livro termina com o poema "Saldo", que, acredito, resume a minha relação com a poesia:
Na construção do pensamento
a presença edificante da dúvida.
Aos 10, chocolate ou café
Aos 15, meninos ou meninas
Aos 20, sexo ou romance
Aos 25, loucura ou tratamento
Aos 30, poesia.
A primeira coisa que falei com a designer Heliana Soneghet Pacheco foi que o livro teria que ter um mapa, onde cada paragem fosse um país, cuja capital fosse o título de um poema. Heliana acertou na mosca. Mas e a capa? Eu sabia que tinha que ter um retrato de cidade, mas com elementos de montanha, da natureza, não sabia muito bem. Sonhava com isso todas as noites.
Até que numa manhã, atendendo a um cliente em seu escritório envidraçado, eu vi a capa sorrindo para mim: a imagem de uma seqüência de montanhas protegendo um grupo de edifícios tímidos e cinzas, na Tijuca (RJ). Fiz um esboço para Heliana que acabou fazendo a pintura definitiva da capa – que é um traço, demarcando o topo da montanha e o acontecimento de uma lua disforme. Depois, Heliana bolou todo o cenário encantado do livro: uma chuva de papéis coloridos na capa e no miolo do livro.
O lançamento foi no dia 17 de outubro de 1992, também no Espaço Cultural Lugar Comum, em Botafogo (RJ), Rio de Janeiro. Foi uma noite linda, com um espetáculo de meu irmão Paulo Corrêa, tendo como convidados os cantores João Pinheiro e Márcia Valery, a quem eu anteriormente havia dirigido em shows.
Não me pergunte em que
tanto difere assim
meu vale do resto do mundo.
>Não saberia provar que
enquanto no mundo chove, lá orvalha
enquanto no mundo acontece a manhã, lá clareia
enquanto no mundo a mata cresce, lá florescem.
resto do mundo os bichos pastam.
No vale, correm.
No resto do mundo a lua tem fases.
No vale, humores.
No resto do mundo asfalto.
No vale poeira.
Para cada história do mundo
Para cada morte
duas passagens.
Para cada insônia
duas noites numa só.
Meu vale anda quando corre.
Já que me permite o breu
não preciso guardar velas para o escuro:
aproveito e sonho
com o rio e o caminho que fazem as águas.
E com a lenda da noiva
que meia hora antes do casamento
resolveu se banhar já vestida
molhar os pés e as mãos
como bênção e proteção.
Mas acabou não resistindo
e deu-se ao rio inteira.
A água a aceitou.
Hoje é sereia intocada.
Acordo quando o vale desperta.
resto do mundo não entenderia
que a história garante:
o noivo se encontra com a amada
vestido e de alianças na mão
toda noite às seis
na beira do rio que pára.
Admitindo a imensidão
um porre de estrelas.
O corpo dobrou-lhe as pernas.
Ia-se o menino.
Não mais via os faróis
que fingiam não vê-lo
atropelado e morto.
Da fotografia no jornal
tive medo de que recolhessem
sua alma encolhida
para estudos.
O desenho de Ana
O rosto de Carolina
Carnavais
Fantasias de que mesmo?
Ana sairá distraidamente vestida de Carolina
E Carolina não.
Ana percorrerá os blocos. Rio de Janeiro.
Carolina ficará esperando que volte.
Ana antes de sair toma remédios
para a dor de cabeça vespertina.
Carolina nada cuida de seu doído tornozelo.
doecerão em breve no conjugado.
Ana de cistite
Carolina de tanto.
Ana voltará da folia exausta e arrependida
pele tapada de suor e confete
pulseira e aliança nova de serpentina:
cairá em sono profundo de sonho e cerveja.
Boca aberta.
Carolina perdoará
inclusive deixará pronto o café forte
na garrafa térmica da cozinha:
cochilará em sobresslatos, já sabe.
Amanhã como em toda quarta-feira de cinzas
acontecerá o de sempre.
Ana levantará
e quebrará o espelho do banheiro.
Carolina outra vez compreenderá.
Até lá
Ana está morta dormindo
e Carolina velando o seu mistério.
Primeiro alertou-me
quanto ao perigo da expressão “para sempre”.
Depois sacralizou: “eu avisei”.
Saiba que nunca mais esquecerei.
A mão veleja, agora, lenta.
Eu tenho um mar
na pele que me toca.
Nada mais me cerca
O cinema é livre.
Assisto à última sessão
agora de dedos entrelaçados
e amor inteiro.
A mão, apresento-me, calma.
Tentava lhe dizer
o tamanho voraz de meu amor
a velocidade maluca de meu amor
a delicadeza bruta de meu amor
o tempo inquebrável de meu amor.
Mas não pude:
a sessão das seis era mais importante.
se foi.
Deus
metódico
risca os dias passados
em seu calendário vencido.
Sim, envelhecemos.
Cometi o seguinte pecado:
experimentei da alegria plena.
Agora teria castigos a cumprir.
Mas como excomungado
reinvento novas alegrias plenas para viver.
>É carnaval.
À mesa
três lápis desafiam a claridade pública
e se tocam.
Ao lado, poemas já cansados.
Este livro do Jacinto tinha algo diferente dos outros, porque contava histórias e era cheio de situações particulares que mereciam uma atenção especial para cada uma. Era um livro de poesias e histórias poéticas com personagens. Falava de viagem, de lugares fora e dentro da cidade. Sempre achei que este livro daria um bom filme e com a trilha sonora do Paulo Corrêa.
Quando ele me procurou, Jacinto já tinha o livro pronto e buscava fechá-lo com o conceito da capa. Foi quando ele viu na Tijuca, num final de tarde, a lua e os edifícios num desenho que o impressionou. Não sei se estava chovendo, mas a chuva era outro elemento que fazia parte dessa sua imagem.
O processo da capa teve um caminho bem definido. Após ver o que o Jacinto queria, comecei a rabiscar o que seria o óbvio do que eu tinha ouvido dele. Edifícios em rabiscos mostrando com a lua foi minha primeira idéia, mas não tinha a chuva. Jacinto então fez um esboço para mim, com duas idéias. Ali já se via a idéia de linha para os edifícios e a lua. Ele também fez vários esboços com a lua e a chuva porque pensamos que a chuva poderiam ser pequenos triângulos coloridos caindo do céu. Já pensávamos em papéis coloridos e então comecei a fazer bonecas para vizualizar como essa capa e a quarta capa (que é também conhecida por contracapa) ficariam. Mais tarde, essa chuva ficou sendo sete triângulos representando os sete capítulos do livro. O Jacinto achava que isso tinha sido coincidência, mas eu devo ter planejado. Eu sempre faço escolhas que fazem algum sentido. Então comecei a pensar na fonte do título e sua posição na página. Foi aí que vimos como a quarta capa ajudava a criar o cenário do livro e vi que capa e contracapa abraçaram o livro. Logo ficou claro para nós que os edifícios seriam marcados por linha e que a lua, uma imagem forte para o poeta, deveria ter o seu destaque (foto 1).
Definido isso, pensei: como seria a “linha” do Jacinto? Linhas existem aos milhões por aí, mas qual seria a linha, o traço, que o melhor representasse? Foi aí que me lembrei de que, além de poeta, Jacinto desenha expressivos rostos e tinha uma seqüência desses desenhos feitos na época, com hidrocor preto, daqueles grossos. Vi, então, a linha que usaríamos no desenho do cabelo de um desses rostos. Fiz vários testes com hidrocor, mas a linha precisava ser mais expressiva que aquilo que o hidrocor poderia proporcionar e então fui para o pincel. Ali só precisei achar o desenho perfeito que corresse ao longo da grande capa. A lua, no estilo da linha, virou um borrão acima dos não-mais-tão-evidentes edifícios (foto 2).
Mas nos rabiscos que fizemos, vimos que a lua aparecendo na quarta capa equilibrava todo o desenho, além de precisar ficar pontuando ali para realmente ter uma grande capa que “abraçasse” o livro. A quarta-capa ficou sendo um desafio porque ela precisava ter sua força – senão, a sensação era que o livro “caíria”. O resultado foi que a definição do tipo de traço da linha fez com que o desenho da lua na frente da capa ficasse com o mesmo tipo de tratamento, resultando num borrão como uma lua disforme. Por sua vez, a definição da chuva de triângulos coloridos fez com que a lua de trás também ficasse com o mesmo tratamento dos triângulos, pois ela virou um grande triângulo roxo! Esses triângulos ficavam numa capa cinza. Esse cinza foi escolhido porque a cor valorizava cada papelzinho colorido (foto 3).
Jacinto vê o livro como um diretor de cinema. Agora tem isso, agora tem aquilo, isso é assim, isso é assado. O livro pronto na cabeça dele tem um roteiro que nem sempre vem com a solução, mas definitivamente, com a demanda. O caso aqui era que ele, o autor, não poderia estar dentro do livro. O livro era dos personagens dele, ou ele em outros tempos. Não ele naquele momento. E o livro tinha aquela tal parte que fala do autor com foto e tudo. Onde colocar isso? Foi aí que bolei colocar do lado de fora, mas protegido, porque era importante proteger o poeta. Resultado: deixei a lua de trás fazendo companhia a ele (estava na mesma página ao seu lado) e a linha dos edifícios ficou numa página a mais que cobria a foto do poeta e o seu texto (mas não cobrindo a lua). No fim, acho que fiz algo como quarta e quinta capas, se é que isso existe! (foto 4)
Outra demanda legal foi trabalhar a idéia de viagem no livro. Jacinto via um mapa. Mas que mapa??? Minha pesquisa foi ver os tipos de mapas que têm por aí e ver qual se adequaria para a linguagem do livro (foto 5).
E achei um tipo interessante feito, numa malha quadriculada. Fiz exercícios com essa malha e fui definindo com o Jacinto os capítulos e os poemas significativos de cada um, como regiões e capitais. O traço usado na capa foi o mesmo que definia as regiões, e linhas pontilhadas marcavam caminhos, movimentos de viagem. Uma mancha pontilhada também marcava partes do mapa em pequenas regiões. Quadradinhos seriam marcas de cidades, e por aí a fora. O resultado foi um mapa numa malha quadriculada onde cada quadrado representava um capítulo. Esses, separadamente, foram repetidos no início de cada segmento do livro, com o nome de cada capítulo ao lado (foto 6).
Outra demanda do livro era que a música “Sinais Urbanos”, do seu irmão, deveria estar em destaque em algum lugar no livro. Pensei primeiro na segunda capa (verso da capa), mas a música deveria estar dentro do livro e não nas beiradas. Então pensamos em ter meio que dois começos. Já que tinham dois finais, por que não dois começos? Seria assim: abriria-se o livro, veria-se a folha de rosto, depois a dedicatória, agradecimentos e aí viria a música do Paulo, um trecho da música, aliás. Mas antes de decidir isso, fiz vários estudos de seqüência com textos simulados (foto 7).
Após a música é que viria a falsa folha de rosto, onde se daria início à “viagem” que são os poemas do livro. A idéia de ter o mapa por detrás dessa página que só tinha o nome do livro era para que a transparência natural da página mostrasse o mapa. E ficou bem legal isso.
As poesias foram compostas em Garamond e os títulos numa fonte que não me lembro qual agora, mas era sem serifa. Fiz estudos para definir tipo, tamanho e se seria versal versalete ou somente capitular. Os títulos dos poemas, da capa e toda a música do Paulo, usavam a mesma fonte. A composição do texto respeitava a diagramação do poeta, que, ao escrever, já definia os recuos e todos os espaços em branco. Também mantive todas as linhas poéticas na mesma linha tipográfica, deixando que cada linha tivesse o seu espaço e não se metesse na linha debaixo, atrapalhando o ritmo da leitura (foto 7).
A revisão final foi feita pelo Jacinto. Ele lia em voz alta cada página para mim. Foi quando ouvi cada poesia e pude fazer a viagem do livro ao som da voz do poeta. Foi muito bom!
O livro pronto da gráfica veio com todas as marcações de onde colocaríamos os papéis coloridos da chuva, da lua e de uma pequena divisão que achamos importante entre o título e o nome do poeta na capa. Cada capítulo era representado por uma cor e essa cor não era qualquer uma. O tom deveria ser o tom que o capítulo pedisse. O resultado é que cada papel foi de um tipo diferente porque não se tem a cor que você quer em todos os tipos de papéis. Tinha cartolina, papel laminado, jornal (nesse caso, papel em si que era importante - por causa do tema a que ele se referia: Literatura - e não a cor) e papel de seda, o mais difícil de colar. Dentro dos capítulos, marcamos também poesias importantes, uma em cada parte, com as mesmas cores já usadas mais outras, como laranja e amarelo, que não estavam na capa, mas que a poesia delas pedia. Foi uma loucura! 14 papéis no miolo e 9 na capa multiplicado por 500 exemplares. Façam as contas e verão como passamos as noites e os finais de semana dos últimos dois meses antes do lançamento do livro.