A ÚLTIMA INFÂNCIA

Nas noites em que o sono não vinha
era eu o advogado de toda a família
negociando o curto prazo com os fantasmas
que insistiam em surgir nas fechaduras
era eu o sábio de todo o edifício
percebendo a beleza na dor
para consolar a velhice dos mortos
era eu o síndico de toda a rua
mandando Deus se entender com o Diabo
na luta cotidiana pela gangorra do recreio
era eu o jardineiro de todo o bairro
regando com os olhos as pétalas de cada rosa
e o delírio de cada febre que eu cultivava
era eu o dono de toda a cidade
permitindo que o Cristo descesse os braços
e descansasse a obrigação de zelar pelo sonho alheio
era eu o vigia de todo o país
abrindo as asas sobre os telhados
para que a noite não parecesse tão desoladora.
Nas noites em que o sono não vinha
com minhas patas de anjo
eu já ensaiava cartas de amor ao mundo.

 

 

PATERNA COROAÇÃO

Palavras secas me atravessam a garganta
mar rasgado pelo fio afiado de um raio mudo.
A boca cede aos falsos galanteios da dor
e a língua é ponte do que não pode ficar.
Dou à luz bilhetes, versos e estrelas sem voz
entregues a desconhecidos viajantes.
Todas as casas do mundo são pátrias
Todos os homens do mundo são meus
mas nada me habita ou morre por mim.
Tudo que é tempo é silêncio
ou grito de pouco brilho e delírio.
A vida passa
galeria cotidiana de manhãs sem melodia.
Apenas um retrato
encontrado nos escombros do dia-a-dia
me consola.
E é por aquela imagem
do filho que nunca terei
que eu vivo.

 

 

PARADEIRO
Eram tantos lugares para habitar
e eu, menino, não conseguia escolher
um lar para me cobrir
um porto para me perder
uma pátria para me ferir.
Poderia ser a casa de meu pai
o esconderijo de minha mãe
qualquer quarto de hora ou hóspede
poderia me ter seu
morador de uma sombra ou hemisfério enluarado.
Mas tantos lugares não eram um.
Até o mar, que por mais mar que fosse, faltava
o aconchego de me caber.
Eu não cabia em nenhum castelo, em nenhuma ruína.
Até a ciranda, que por mais ciranda que fosse, faltava
o compasso de pertencer à roda.
Por isso, todos os lugares eram pouco
pouco mais que a dor de não saber
onde guardar os espantos e os brinquedos.

Foram necessários treze anos
para encontrar as chaves do paradeiro que nunca pára
e finalmente me tornar um inquilino fiel
da estranheza perfeita do quarto-e-sala da poesia.

 

PASSAPORTE

Eu queria gostar de gatos
e mesmo dos ratos dos meus pesadelos.
Eu queria gostar de tecnologia
e mesmo da biologia que quase me manteve ginasial.
Mas dei de gostar dos galos
e mesmo dos halos mais obscuros.
Mas dei de gostar dos homens
e mesmo dos lobisomens menos atraentes do mundo.

Nada ao contrário
Tudo pelo contrário.

E então me faço
gato que desperta a manhã
computador que radiografa o esqueleto da lua.
Ou então me faço
galo que corteja telhados
homem que voa sem céu.

A poesia me permitiu o caos.

 

 

ADOLESCÊNCIA

    tão.

 

 

PERDÃO

O eu
do eu te amo
morreu.

 

CONSTATAÇÃO

Eu não sabia que Roma era azul
nem que azul era o tom da aurora.

Não podia imaginar que se bebia azul no ar
ou que o azul se fazia chão para a poesia.

Sequer supunha azul a palavra confessada
quanto mais que o perdão se vestia de azul.

Não desconfiava que se morria de azul
para no azul novamente amanhecer.

Quem dera reconhecer azul toda saudade
ou que para o azul se convertia toda decência.

Eu não sabia que os seus olhos eram azuis
que de tão azuis, negros.

 

A ETERNIDADE CABE NUM SEGUNDO

Não há mais tempo
para o peito ser a terra da desordem
nem para a saudade nela cravar
sua bandeira de retalhos roídos.

O sol já se pôs
a caminho
A lua já se deitou
entre nós
O que parecia fim é entardecer.
Os anos desistiram da tempestade
e oferecem no calmo azul
a chuva mansa da maturação.
Resta colher o que não morrerá.

As sementes vingaram.
O que seria fruto, sabor
O que seria pétala, frescor.
As folhas não reconhecem o vento do adeus.

 


CONTÍNUA

A sombra não possui ossos
e ainda assim sustenta
corpos, costumes e convivências.
A sombra não possui rugas
e ainda assim tomba
costas, culpas e curvas.

A sombra descansa no breu
mas nunca dorme
A sombra é o cão que guarda
mas nunca rosna

A sombra não é geométrica verdade
A sombra não é amiga
A sombra não passa em roletas
A sombra não passa de uma memória exilada

A sombra só se veste com o sangue divino
A sombra só se despe em réquiem alheio
A sombra não vale a luz que a mantém
A sombra não vale o chão que pisa.

Eu já não possuo uma sombra.
O que se vê a me seguir nas calçadas
como numa estranha procissão de mudas beatas
é a alma, em seu constante e frenético movimento,
à cata da moldura exata para o nosso auto-retrato no mundo.

 

NOVELO

Não mais posso tocar
a textura dos sonhos
alinhavados no acaso de sua mão
distraída em meu colo noturno.

O tempo teceu-se esta colcha
retalhos de adeus e desconforto
remendados a olhos secos.

Hoje, o bordado desfaz-se fio a fio
nos lençóis desconhecidos do carinho alheio.