Comentários do poeta


CENAS NUAS: A PAIXÃO E O INCÔMODO DO TEATRO

Apesar de ter sido meu segundo livro publicado, em 1990, Cenas nuas foi o primeiro a ser montado, em 1987, para participar de um concurso literário. Quando estava para montar o livro, pensei: mas o que eu quero dizer com esse livro? E lá fiquei tentando descobrir um fio condutor, uma idéia. Bastou uma boa noite de sono. Era preciso falar de uma paixão que também sempre foi um incômodo na minha vida: o teatro.

Até os meus 30, 35 anos, toda vez que assistia a um espetáculo de teatro ou a um musical em teatro, eu sentia uma atração muito forte em chegar perto do palco e tocar-lhe o chão. Dava uma sensação maravilhosa, de proximidade, como se eu conhecesse muito intimamente os segredos daquele espaço. Era tanta atração que chegava a me dar enjôo. Eu realmente ficava muito mexido, principalmente na adolescência. Cheguei a pensar em ser ator, mas, felizmente, essa idéia logo desapareceu. Eu não passaria de um canastrão de faroeste mexicano de quinta categoria.

Quatro atos

Então, o livro era uma homenagem a essa paixão pelo teatro. Assim, antes de escolher qualquer poema ou título, dividi o livro em quatro atos: O cenário recriado, A alma dos fantoches, Acontecimentos de cena e Camarins de rua. E aí ficou fácil escolher os poemas.

O cenário recriado acolheu apenas um: "A respeito do transe", que fala que o artista é apenas um veículo para a manifestação da arte. Esse poema aconteceu quando fui comprar um anel na Boutique da Prata, em Copacabana (RJ), e fui atendido por uma senhora elegantíssima. Vestida como se fosse uma dama da corte, muito magra, no meio da venda, que quase não se concretizou (eu paguei com cheque e não sabia de cor o meu CPF), ela falou, sem mais nem menos: "Você sabia que na outra encarnação eu fui uma artista muito famosa? Eu era reconhecida pelo meu talento e pela minha beleza. Mas eu maltratava muito os homens, todos a meus pés. É por isso que hoje vivo tão só. Estou pagando tudo que fiz".

Sem saber o que dizer, peguei o anel e fui para casa, certo de que estivera com uma verdadeira artista, que atravessara gerações para me contar a única verdade: o artista nada cria. Mas antes perguntei seu nome: Dona Eunice, que consta na dedicatória do poema:

(...) O segredo de todo artista está na mais estreita verdade de que ele nada cria, apenas expõe-se (...) A arte, por si só, inexiste. Ela é arrancada de cada hora, de cada olho, de cada morte, de cada ressurgimento: mas não é inventada. Todo artista já nasce composto de espantos. Quando dá conta do medo já afogou-se (...)

A alma dos fantoches apresenta uma série de poemas ligados a personagens, sempre presentes em qualquer palco que eu pudesse imaginar: sereias nada boazinhas, bruxas temerosas da fé, atrizes sem talento, e aquele palhaço que uma vez eu vi na casa onde se hospedava um amigo meu, o pesquisador João Elísio Fonseca, do tamanho de um homem de 1,70m. Aquela visão humana, não-humana, repleta de cores e panos, parecendo cansada, me levou à idéia de que é possível abortar uma flor.

A terceira parte do livro é Acontecimentos de cena, com uma série de Pedaços, com poemas de amor, fé, detalhes cotidianos. A quarta parte Camarins de rua traz um cheiro de futuro, com poemas mais enigmáticos, onde consta a poesia "Cena nua", que gerou o título do livro:

O instante mais revelador
é o que se vive solitariamente.
Sem representar-se como artista.
O momento em que o palhaço
- pintado e vestido -
abre os braços
e consegue
ver-se e mostrar-se nu
exatamente no meio do palco.
Sem platéia.
Sem aplauso.


Estrutura gráfica e lançamento

Quanto ao projeto gráfico, que só foi nascer depois do lançamento de Entre dois invernos, ou seja, em junho ou julho de 1989, eu sabia que era necessário que o livro fosse deitado, imitando um palco, e que tivesse divisórias com a cor vermelha, lembrando as cortinas de veludo das salas de espetáculo. A designer Heliana Soneghet Pacheco se encantou com a idéia e me presenteou com um projeto gráfico lindo, em que a capa é solta, simbolizando o desnudamento a que todo ator está sujeito no palco.

O lançamento aconteceu no dia 18 de dezembro de 1990, no Espaço Cultural Lugar Comum, em Botafogo (RJ), que inaugurara há pouco tempo. Para poder lançar o livro lá, eu e Heliana nos propusemos a montar uma exposição com fotos de Cacilda Becker, pertencentes ao dono do espaço, o bailarino e amigo Samuel Santana. Na época, não fiz nenhuma conexão entre os fatos. Hoje, percebo a magia de estar lançando um livro de estrutura teatral e de estar, ao mesmo tempo, montando uma exposição sobre uma das maiores atrizes dos palcos brasileiros. Sorte ou bênção.

O lançamento contou, também, com uma luxuosa performance da atriz Beth Araújo, sempre vigorosa, que, acompanhada ao piano, interpretou o poema "Sonata":

(...) Não penso em termos de continentes.
A terra dá o que deixam.
Os países necessitam de fronteiras demarcadas
e de tratados que os regulem.
É óbvio, eu sei.
Me chamo guardião de almas (...)