Cenas Nuas

por Heliana Soneghet Pacheco

A parceria
Depois que havíamos feito Entre dois invernos, uma parceria entre mim e Jacinto se formou naturalmente. Fizemos juntos uma exposição sobre Glauber Rocha (1990) quando trabalhamos num casarão em Botafogo e foi quando ele escreveu:

Era tarde, longe de ser quase noite.
Alguém, quando eu, reclamou do sol.
As avencas pareceram dar de ombros.
Heliana ouviu.
Mas ninguem ousou reclamar da tarde.

Variamos os passos do único passeio… e por aí vai.

Já pensou conviver com alguém assim? Pois é, imagine, então, o privilégio. E não é que o moço escreveu um outro livro?! Na verdade, parecia que ele escrevia e montava ao mesmo tempo. Não era um processo linear. Era um descobrimento. Ele sentia, escrevia ou coletava seus escritos que encaixassem na alma do livro.

 

O livro
Jacinto via Cenas nuas como um palco com cortinas aveludadas, cor de vinho. Haviam atos que pediam a cortina. Havia gente e não máquina. Havia nobreza.

Pensamos, logo de cara, em veludo vinho para a capa, mas inviável naquele momento. O desafio seria fazer com o que tínhamos. Tínhamos idéias e disposição. O formato, sem dúvida, deitado. Afinal, falávamos de palco. Papéis de cor seriam divisões no livro chamadas ATOS. Seriam as “cortinas”. A capa, de alguma forma, seria a cortina de veludo, mesmo que só na cor. Chegamos a pensar em Ato I: marrom claro (beje), Ato II: creme (vergé/amarelo claro), Ato III: azul acinzentado/meio roxo e Ato IV, telha (abóbora).

Chegamos à conclusão de que os atos deveriam ser da mesma cortina da capa e decidimos adotar somente papel vinho para todas as divisões do livro. O vinho era o vinho do papel color plus. Queríamos exatamente aquele tom. Usar papel já colorido dava unidade à cor e evitava os custos da impressão colorida. Ao decidirmos por isso, nos deparamos, entretanto, com o desafio da impressão do texto no vinho, que não poderia ser em preto. Não podia ser um texto mais escuro que o papel porque ficava “pesado”. Os títulos eram em branco, precisavam ser em branco. A solução foi imprimir em silkscreen.

O toque humano se fez pelo uso da escrita a mão nos títulos das “cortinas”. A espessura não poderia ser nem muito fina, porque o silk não funcionaria, nem muito grossa porque ficaria pesado. O toque nobre foi dados pela escolha da fonte Garamond, que, com o seu ‘a’ amassadinho, também era poética.

Livro pronto, impresso, cheirinho de novo, descobrimos um erro de revisão que mudava completamente o sentido do poema. A atriz, “que não acreditava ter ganho o papel por favor”, ficou sem o papel por “pavor”. Resultado: novo batalhão de anjos foi convocado para consertar livro por livro, com delicadeza para transformar p’s em f”s sem furar o papel na hora de apagar e com arte para reescrever a letra correta. Confesso que parte de mim se deliciava. Tocarmos todos os livros e deixar nossa energia em cada um me encantava. O que foi maravilhoso no primeiro livro se repetia nesse, por acaso. Acho que fiquei viciada.