A RESPEITO DO TRANSE

Todo artista atua procurando iludir o tempo. A cada obra-prima a suspeita de ter tocado (ou varado) o ventre oco de Deus. Quando o tempo foi enganado: a tênue impressão de que se o teve sob as mãos. O segredo de todo artista está na mais estreita verdade de que ele nada cria, apenas expõe-se. Assim, acontecem de maneira natural a autodenúncia, o auto-respeito, o auto-elogio, a autodemência, o autoprazer, o autodesleixo. E nada mais solitário e perfeito que o instante do transe.

A arte, por si só, inexiste. Ela é arrancada de cada hora, de cada olho, de cada morte, de cada ressurgimento: mas não é inventada. Todo artista já nasce composto de espantos. Quando dá conta do medo já se afogou. Quando nada percebe recolhe frutos como se apenas tivesse a fome. A ele não é dado o direito da escolha – universo falsamente livre e largo onde pisa. Enquanto veículo o artista oferece a expressão do corpo. A alma jamais lhe pertenceu.

CASA

O café ainda não é feito às pressas
- manhã vagarosa e longa.
Reparo o silêncio de roupas esquecidas na sala
- sonos prolongados e entregues.

Penso que ainda não é tempo de enfraquecer
- as folhas continuam verdes
- há esperança de frutos.
Raízes fortemente construídas.

Uma parte do futuro
já nos foi apresentada.
Sabemos da possibilidade do corte
da probabilidade da alegria
da certeza do encontro.

Histórias.

 

CADEADO

Solidão da voz: sem palavra

Unem-se as fibras da língua

Mas os dentes impedem a saída.

 

O murmúrio, então, propaga-se (.)

(Há resistência sã na espera?)
(Será que ainda lembra de mim?)

ANTROPOLOGIA

Na janela que fechava
tornava-se proibida
a entrada das águas.
Tanto que chovia.
Mas entre a minha dor e a de Deus
prevaleceu o conforto seco de meu pranto.

 

PEDAÇOS IV

Um encontro
e duas faces de um mesmo acontecimento.

Na verdade
nem sabe que está distante de mim.

RETROCESSOS

O menino, de dentro do ônibus, acena para ninguém na rua. Como se lá estivesse alguém que lhe conforta a dor, alguém que lhe faz falta. Mas não há nada.

No banco de trás, para não deixá-lo triste pela ausência real, também aceno para o vazio: e o menino me olha – sem qualquer espécie de susto ou surpresa. Apenas ri como se dissesse: “É mesmo assim. Você é outro que sabe”. Depois vira o rosto e me esquece.

Durante o resto do trajeto, até chegar em casa e me esconder sob grossos cobertores, achei que o menino realmente já sabia o que era não ter do que sentir saudade.

O ATO CALADO

Então te perco mesmo assim
entre memórias que se levantam
entre projetos futuros que se arrastam.
Restos da noite.

O delicado abandono não ameniza.
(A porta não foi fechada com força
nem houve gesto de ódio.
Mas a dor surge como eco
de uma luz inexistente que nos contorna).

Não convidei para a última dança.
Deixei, inutilmente, que se fosse.

PARTILHA

Você detém a memória.
Eu, os fatos.

Na dolorosa divisão de bens
deixou-se a esmo as paredes nuas da casa.

INTERLÚDIO

Sobram misérias.
O país avança
em torno de si.

Sobram-me rancores e
um país que avança
rumo ao futuro que volta.

Não digo nada de novo.
A dor é a mesma.

 

VENTRES


Americas
que surpreendo desacentuadas
se desesperam em blocos.

A mulher do norte
   abortando seus horrendos campos podres;

   a do centro
   extravazando sonhos em mares e sangue;

   a do sul
   ecoando silêncios entre dores e inventados prazeres.

Américas
que separadamente acentuo
se limitam a gerar.

A primeira mãe
   devorando os próprios fetos secos;

a segunda
   sonhando fortes meninos;

a terceira
   espantando permanentes homens sensíveis.