O derrame das pedras

por Heliana Soneghet Pacheco

O derrame das pedras era um livro de paixão absoluta, desenfreada, um turbilhão, onde a imagem de pedras caindo de uma ribanceira no mar simbolizava toda a história. Jacinto falava em imagens de pedras caindo, mas aquela falta de controle me inspirou a pedir a ele para ver tudo de imagens que ele tinha que fossem importantes. Eu não sabia ainda o que fazer, mas precisava vê-las. Seu pai era fotógrafo e pedi para ver suas fotos, pedi para ver sua certidão de nascimento, desenhos, ídolos, torpedos, sei lá, o que tivesse marcado sua vida.

E aí me deparei com uma textura muito interessante. Jacinto já pensava em colagem para a capa e, diante das imagens, tive a idéia de um mosaico fazendo uma composição em que cada pedacinho tinha uma importância, uma mensagem, uma parte da história do poeta. Isso porque esse livro apresentava o poeta muito mais nu do que em Cenas nuas e também muito mais desprotegido do que em Entre dois invernos. Mas ele consegue segurar essa exposição toda poeticamente. Fez um estrutura onde senhas guiam o leitor pelo caminho do livro. Essas senhas foram inspiradas nos resultados de jogos do bicho depositados nos postes da cidade. Eram declarações de amor e mágoa desenfreadas a inspirar poeticamente o projeto gráfico.

E sem conseguir ser diferente da inspiração do poeta, mergulhei com tudo no mundo que se apresentava para mim. Senhas, pistas e poesia. Com o mosaico, via-se a falta de controle e a tentativa de dar lógica ao turbilhão. No miolo, o rompimento com a posição gráfica esperada de um livro tradicional, mas que isso não fugisse a uma lógica intrínseca.

Da mesma maneira que cada pedaço da colagem levava a um todo cheio de vida, cada poema do livro, cada página era um mundo próprio. O poste e a senha aparecem no formato do livro longilíneo e em momentos no livro em que o poeta queria pontuar. Nesse momento, o texto poético foi feito em caixa alta, e um papel retangular compridinho na vertical com um formato de faca ou seta na ponta pontuava. A fonte escolhida foi uma que lembrasse máquina de escrever. A American typewriter foi essa fonte porque tinha uma certa personalidade que eu não via na Courier para aquela situação. E aí o texto dos poemas e o título da capa foram todos nessa fonte. Os títulos internos foram em outra fonte porque a American typewriter é muito marcante e possui levemente um negrito - e o livro precisava dar uma equilibrada para ficar mais harmonioso. Eu não podia fazer tudo bold porque faltaria contraste e a voz do poeta não seria ouvida. A fonte para o título dos poemas foi puramente escolhida pela combinação estética com a fonte do texto. Ainda precisei condensá-la um pouco até que ficasse do jeito que eu queria.

As páginas tinham como projeto serem diagramadas de acordo com o que o texto pedisse em composição com a página ao lado. Isso levando em consideração que eu deveria sempre ter o poema dentro das margens superior, inferior e laterais, mas em quaquer posição na página, contanto que não fosse de cabeça pra baixo ou coisa assim. Com os títulos, por outro lado, esses poderiam ficar em qualquer posição, subindo, descendo, de cabeça para baixo, onde quisessem, onde o poema achasse que eles deveriam ficar. Podia até ter dois poemas numa página, se assim ficasse coerente. Poemas que originalmente tinham uma diagramação especial como “Parte 2”, eu entendia o que o poeta queria e mantinha o desejo dele.

O livro tem abas que são a continuação da colagem da capa sem nenhuma informação adicional. Foi um jeito de embrulhar o livro e fazê-lo envolto num ambiente só dele.
Na finalização, fiz as artes finais na minha impressora a laser e aconteceu uma coisa interessante em relação ao resultado final. As páginas ficaram com um resultado muito legal na laser, mais leve que o resultado da impressão final da gráfica. A impressão foi mais uma vez a off-set rápida, a foto eletrostática - que sempre usávamos para os livros do Jacinto pelo baixo custo.

Essa diferença me chocou, pois, apesar de conhecer bem essa impressão, eu estava no limite de trabalhar com um tema forte: o “derrame”. Eu tinha que pincelar forte, tinha que chegar a um limite extremo e não passar dele. Mas eu acabei passando. Derramou!
Fiquei sem poder abrir o livro por anos, eu acho! Eu o folheava, passando assim com os dedos as páginas, e era meio que agredida pelo negrito da impressão E isso me entristecia, porque nós tínhamos, eu e o Jacinto, trabalhado a diagramação página por página. Cada página foi discutida e decidida por nós dois e isso, além de ter sido delicioso, tinha sido uma nova moda de mexermos em todas aa páginas juntos, coisa que vinha dos outros livros de alguma maneira.

O final dessa história foi quando peguei uma gripe e livros de poesia para ler, uns seis anos depois de impresso. Com frio, na cama, tosse fraca, corpo dolorido - do jeito que minha mãe adora ficar - catei todos os livros do Jacinto para ler. E aí foi a primeira vez que fui realmente ler O derrame das pedras como uma leitora comum e não como quem havia feito o livro e queria ver se estava tudo certo. Abri página por página no tempo de leitura de cada uma, no tempo que eu queria ficar em cada uma e levei um susto! Acho até que chorei! Eu fiquei tão emocionada! E só então consegui ver o resultado do que havíamos planejado. Cada página era um mundo com a combinação das páginas face a face, sendo algo a mais. Eu finalmente, depois de anos, venci a minha decepção e o bloqueio que fiquei, com a frustração do resultado, por justamente ter feito o que era para ser feito desde o início: pegar o livro para ler.