O TRATADO DOS MÁGICOS

                     I
Nada devo obedecer
placas, avisos, alianças
Nada devo pedir
sinais, idolatria, postais
eu e você
não passando de acaso sincero ou duradouro
eu e você
a meticulosa vaidade
de falsas cartas, de inocentes truques
de luxuosas cartolas, de assustados coelhos
de olhos, de noites de olhos sem fim.
Vivemos, diários e a sós
a parte que nos cabe
reforçando as sete vidas
justificando os sete fôlegos
repartindo as sete juras
personificando os sete caos
anunciando as sete maravilhas
acobertando os sete erros
esquecendo as sete pedras guardadas
decifrando as sete pedras atiradas
permitindo as sete pedras derramadas
sobre o mar aberto.

                     II
Nada devo obedecer
identidades, passados, fotografias
Nada devo pedir
socorro, futuro, xícara de açúcar
eu e você
a lógica bastarda
e primariamente revolucionária do dia presente
eu e você
o cumprimento em silêncio
do perdão prometido, da fuga planejada
do escândalo escrito, do sonho revelado.

                            III
Nada mesmo devo obedecer ou pedir.
Apenas espalharei pelos postes da cidade
para que não se esqueça
sete enigmas
que seriam sete presságios não fossem sete acordos
que seriam sete recados não fossem sete mensagens
que seriam sete facadas não fossem sete carinhos
que seriam sete verdades não fossem sete suspeitas
do amor que ficou.
Para encontrá-las será preciso apenas cega intuição
Para vê-las apenas olhos despidos
Para lê-las apenas lábios treinados
Para decifrá-las apenas o antigo código secreto: dois
Para guardá-las apenas não temê-las.

                            IV
Então assim serão sete charadas
que seriam sete senhas não fossem sete poesias
de ter e não saber localizar a ausência
de adorar e manter sob sigilo
o que publicamente já se eternizou.
Versos
para que em dias de saudade mortal
roubá-los seja a única e inevitável saída.

VIRTUDES

Esse meio termo
que me perde
entre
ódio e amor
prestação e à vista
glória e desistência
branco e tinto
você e eu
cansa e aprimora
meu faro de ave de rapina.

Balões de gás que sobem
Aviões de guerra que caem
Momentos de decisão.
Atiro no alvo
Caio atingido.
Mas nunca morro enquanto todos morrem.
Quero sempre o êxtase da particularidade.

Então os dias passam
e eu
entre
mim e você
acumulo dívidas
acumulo roupas sujas
acumulo reparos no apartamento
acumulo perdões resolvidos
acumulo poeira.

Então os anos passam
e eu
entre
mim e você
envelheço.

PEDAÇOS VIII

Morrerei sagrado
jamais consagrado no que faço.
O perdão me veste
mas não se vicia em mim.
Santo de meu próprio perdão sem compromisso
abençôo em silêncio
toda a multidão que me ignora.


PEDAÇOS IX

Seu beijo era nocivo a meu desejo
Seus amigos nunca foram os meus
Sua arrogância era de funcionário público
Seu silêncio, crime hediondo
Sua frieza, impublicável.

Verdadeiramente sinto sua falta.

DECLARAÇÃO

Não há possibilidade de memória:
hoje a chance é a do pavor absoluto
Febre pequena e contínua na pocilga da alma
Cheiros absurdos da ferrugem da lágrima robótica

Eu te amo tão estupidamente
que as flores apenas se mantêm flores quando te penso

A vírgula do poema é de aço frio
O ponto final, derradeiro
E o corpo, exposto, sua águas de rio sujo
onde conchas e restos de folhas insistem

Eu te amo tão grosseiramente
que me mantenho flor

Pinto quadros com sangue ralo
Os animas empalhados pelo tempo adquirem voz
e gritam desesperados por mim
Agradeço, sem articular palavra ou esperança

Eu te amo tão humanamente
que na calçada da tarde desfolho

Os ganchos metálicos de minhas patas rangem
Meus nervos, manuais e da carne e do osso, ecoam
Sorriso de lata misturado à aura pura de santo:
o que sou apodrece em prata envelhecida

Eu te amo tão infantilmente
que entre babas e seivas alimento o cosmos

Astronauta de nave construída por pele e tatuagens
desfaleço sem descompressão no fundo abissal
O mar do céu é dentro da estrela do mar
e, tonto, obedeço ao computador que me exige definição

Eu te amo tão desesperadamente
que as tempestades acontecem para lamber e viciar
os lábios das terras do mundo

que se acomodam
entre ferros velhos e recentes sementes
onde acumulo anos
a uma espera que é também tua.


FOLCLORE

Não tenho o que dizer a mim mesmo.
Náufrago de memória roubada, rezo
cantando tangos e sambas
entre a Buenos Aires e a Carioca.
Perdido na Uruguaiana
não sei com que sabor ou ritmo
me enganar.

PEDAÇOS XVII

Não tenho tempo para poemas trabalhados.
Escrevo o dia-a-dia apressado de Deus.

REENCONTRO

As sombras
independentes
trocaram carícias.


PEDAÇOS XXI

Denuncio-me.
De livre e espontânea vontade confesso:
fui eu quem desejou a grande tempestade.

Alguém
em algum lugar distante da cidade
também grita diante da multidão
absolutamente encharcado.

O que nos une, grande amor
é mistério.


O DESENHO DOS PÉS

Eu te amo de longos trajetos.
Na Páscoa sucumbi de encontros e estradas
Cortei a veia com poesia
Bebi o sangue rosa-choque encontrado
Purifiquei-te.

Não mais te amo de próximos percursos.
Petrópolis é o berço da aurora
onde sonho
Embora o corpo não esteja por lá assentado.
Comemoro com os que aparecem
na TV defronte
a inesperada chegada de mais um ano.
Abril ou maio, eu já não sei
O amor é do tamanho dos passos