O primeiro livro – Entre Dois Invernos

por Heliana Soneghet Pacheco

Eu me lembro que, um dia, Cecila Leal, amiga de uma professora minha, que tinha me visto, na PUC Rio, na apresentação final de um projeto sobre Mario Quintana, me ligou perguntando se eu faria o projeto gráfico de um livro de poesia de um amigo dela. Tudo o que eu queria na vida era fazer coisa relacionada à poesia, e aquele telefonema parecia que coroava um período muito legal em que eu fazia coisas concretas em relação a isso - eu tinha acabado de fazer um projeto em que Mario Quintana era o tema. Ela disse que seu nome era Jacinto e leu uma poesia para mim no telefone que terminava assim: “Me acorde às cinco. Eu preciso buscar o sol pra você.”

Pensei: ai, meu Deus, esse cara é bom! Me deu nervoso. Ela queria marcar um encontro, mas eu estava indo para Fernando de Noronha, parte dessa minha ligação com ‘poesia concreta’, e só na volta nos encontramos. Foi na casa dela, na rua Ministro Raul Fernandes, em Botafogo (RJ). Um apartamento lá no alto, de onde víamos, da sua varandinha, centenas, milhares de apartmentos dos edifícios vizinhos.

Era fim de tarde. Eu estava nervosa porque não é sempre que a gente encontra os poetas pessoalmente. Quando chegou, só me lembro que ele tinha um cabelo enorme. A conversa foi tomando seu rumo mais descontraído à medida que os tais milhares de apartamentos vizinhos foram ficando azuis com a luz das televisões ligadas.

Eu queria saber como ele era, para fazer um livro com a cara dele. Lá pelas tantas, me mostrou um caderno de notas em que ele escrevia poesias e de onde muitas poesias daquele livro vieram. Era uma caderneta em espiral, com páginas coloridas e acho que papéis de seda também. Era o berço onde suas poesias tinham nascido, e ficou claro pra mim que eu tinha encontrado a inspiração para o livro. Deveria ser um livro que contasse do processo da poesia, mesmo que não evidente. Precisava ser só coerente.


Saí de lá animada com essa idéia e a Cecilia tinha me oferecido a estrutura de onde ela trabalhava para que eu estudasse os layouts. Eu poderia usar fotocopiadora, essas coisas.
Sei que fui para lá logo no dia seguinte e fiz experimentos com textos de diferentes tamanhos e fontes, formatos diferentes de livro, para chegar até ao ponto em que o design pudesse dizer que ele estava de acordo com o texto.

Caderneta em espiral
Eu via o livro como uma caderneta e compridinha, nada quadrada. O espiral parecia óbvio desde o primeiro encontro. Meus testes usaram a impressão em papéis coloridos e a letra em negrito. Cecilia lembrou que, devido ao tipo de impressão que usaríamos, a idéia de fazer em negrito garantiria mais a legibilidade do resultado final.

A boneca ficou bem legal para eu e o Jacinto pensarmos com os pés no chão. Os papéis coloridos não precisavam acolher a poesia, deveriam ser referência. Estava claro para nós que o livro não era uma caderneta livro, mas um livro inspirado na caderneta e por isso só usando as referências positivas dela. Resolvemos marcar as poesias que pediam isso com papéis presos ao espiral. Isso era possível para o dinheiro disponível e plenamente de acordo com a alma do livro. Sentamos juntos e fomos discutindo cada poesia que deveria ser marcada e de que jeito. Demos nomes aos papeizinhos: me lembro de “borboleta”, “lápis” e “nuvem”. Cada papelzinho foi multiplicado por 500, já que iríamos fazer 500 exemplares de cada livro. Como foram seis diferentes em cada livro, fizemos 3.000 papeizinhos coloridos em diferentes formatos.

O Jacinto via o livro entre dois cinzas e resolvemos colocar um papel dessa cor no início e outro no final, sem nada impresso. Ele também via no centro do livro que o poema dedicado a seu pai deveria ter uma cor marrom, meio bege. Uma frase (dedicatória) deveria atravessar as páginas centrais do poema, em movimento reto, ligando-as. Eu vi que algo para “o pai” deveria ser em papel vergê. Isso mostrava um certo cuidado que precisava para contrastar com a informalidade da “caderneta”. E ficou resolvido que tanto essa parte do meio quando os papéis cinzas deveriam ser em vergê. O cinza do vergê era um cinza feliz e era o que queríamos. Tudo se encaixou. Teve também uma página em papel manteiga no meio do livro, depois de um poema que falava de inverno e antes de outro que falava em “metade do rosto” e vínculos com o passado.

Técnicas ao alcance do bolso

A fonte usada seria uma que estivesse disponível para a técnica de composição escolhida (composer) e de impressão (foto eletrostática). Duas técnicas ao alcance do bolso. Foi a Times em negrito, corpo 12. Títulos em caixa alta e espaço bom entre título e texto. Esse formato se adequava bem ao tamanho das poesias e a clareza que se queria em cada página. Mario Quintana tinha me ensinado que um livro de poesia deveria ter muitos espaços em branco e eu conseguia isso com o formato e a distância entre os parágrafos poéticos, que ficou bem grande. O livro respirava, e isso era bom.

Resolvido o projeto, fomos para a pesquisa de material. A capa deveria ser forte. Muito forte. Não era só uma capa que sustentasse bem um espiral. Deveria ser forte por ela mesma. Pronta para a briga! Sentíamos isso como parte da alma do livro. Então fomos às papelarias Casa Mattos e Casa Cruz no centro da cidade ver que papéis eles tinham lá. E encontramos um tal de papel couro. Parecia uma madeira o bichinho! Vimos quantidades em relação ao tamanho do livro, ajeitamos um pouco o formato e acertamos a compra. Na saída, encontramos uma amiga do Jacinto que usava uma maleta de médico, mas ela era fotógrafa (Jackleine Nigri). Foi ela quem fez a foto do livro. Dá para ver bem nessa foto a cabeleira que o Jacinto usava naquela época!

Novas aventuras ainda nos aguardavam. Fui de metrô à Triagem, no subúrbio do Rio, e me diverti num metrê que parecia um trem. Lá estava a tal máquina que iria furar os livros e colocar o espiral. Não era qualquer máquina porque o tal papel couro era duro que só! Achamos o lugar, acertamos preço etc. e precisávamos só acertar a impressão na Reproarte, gráfica indicada pela Cecilia desde o nosso primeiro encontro. A idéia era levar os livros impressos e montados para Triagem e aguardar a encadernação. Tinha um probleminha ainda aí. Os tais papeizinhos tinham que ser perfurados junto com as páginas para ficarem no lugar certo. 3.000 clips foram providenciados e colocados nos papeizinhos exatamente onde deveriam entrar, na posicão correta, claro! Jacinto me contou que juntou um batalhão na casa dele e esses amigos foram os responsáveis pelo recorte dos papeizinhos e pela produção toda. Também cortei vários, mas não me lembro de tê-los montado nas páginas. Eu sabia e gostava da idéia de que o primeiro livro dele tinha a boa energia de tantos amigos em cada página. Ele foi tocado em todas as páginas por mãos de gente amiga, mãos de trabalho, mãos e não máquina apenas! Adoro me lembrar disso. Parece um batizado.

Com as coisas ajeitadas assim, foi só levar lá e esperar o ok final!… Que nada. Não acabou aí ainda. A máquina do cara de Triagem quebrou de tanto que ele furou papel duro! Mas no final tudo foi feito em tempo. E aí, quando tudo estava pronto, inauguramos o que tem sido uma constante em cada projeto que fazemos juntos. A ajuda do Paulo (Corrêa), irmão do Jacinto, como o salvador da pátria. Sabe que os tais clips, na pressão sofrida pela máquina de furar, fizeram sua marca em cada página? Cada papelzinho estava no lugar certo, mas a marca do clip estava lá. O fim da picada! O Paulo passou página por página com ferro quente até desaparecerem todas as marcas indesejáveis. Dizem que santo de casa não faz milagre, só se for na casa de outro!

Veja no youtube o processo de criação do livro: http://www.youtube.com/watch?v=kYIm5upjIKY