Comentários do poeta

JOGOS URBANOS: O MAPA DAS SETE PARAGENS

Jogos urbanos, lançado em 1992, foi montado simultaneamente a Cenas nuas, em 1987. A idéia que costura todo o livro é a de um viajante que divide a sua vida em sete paragens fundamentais: O vale, A cidade, A confraria, O encontro, O cinema, O deus e A literatura. Em todas essas paragens, descrevo personagens que me foram marcantes.

Mas antes de apresentar as paragens, é preciso dizer que Jogos urbanos, apesar de ter sido o terceiro publicado, foi meu primeiro livro de poesias mais elaborado. Fiz de propósito: queria mostrar que minha poesia podia aliar emoção a uma certa elaboração formal. Senti necessidade de mostrar que eu podia contar uma história através do formato mais tradicional da poesia, sem ter que abandonar o espírito tão maravilhoso da prosa.

Paragem a paragem

O vale são poemas de memória, infância, sonho e adolescência. São registros de minhas férias de fim e de meio de ano sempre passadas no sítio de minha avó em Araras, Petrópolis (RJ). Eu era – e ainda sou – louco por lá. É o lugar do meu afeto, da minha lembrança, da minha verdadeira construção poética. Araras cheira a mistério, a fantasia, a discos voadores, a sonhos guardados em caixas de sapato no alto dos armários.

Minha identificação com o local vai muito além da relação familiar: o sítio reunia sempre todos os filhos de minha avó, noras, genros, netos e amigos. Mas o que me fascinava mesmo eram a beleza e a possibilidade de mistério de lá. Então, os poemas falam do rio, das montanhas, das lendas que eu criava para passar o tempo, da infância que começava a me abandonar, da difícil relação com a família.

A cidade é a chegada do personagem ao cenário urbano. Os poemas falam da estranheza e da atração que eu tinha em relação à configuração das cidades, da minha simpatia e do meu medo pelo Rio de Janeiro. É nessa paragem em que o título do livro se apóia: dois poemas, "Jogos urbanos (I)" e "Jogos urbanos (II)", desenham personagens que mesclam neurose e fascínio, solidão e esperança de maneiras dramáticas. É a cidade apresentada por meus olhos, pelas minhas dores, pelas minhas expectativas ou esperanças. O poema "Antropofagicamente" sintetiza essa paragem e o próprio livro:

(...) Os canais entupidos da cidade
levam, inclusive, corpos de cães mortos.
Como é feio o corpo morto de tudo
que era vivo.
Ser fantasma é não ter cheiro
pouca ou nenhuma vantagem:
também é não ter prazer (...)

(...) O lobo que há em mim
me abre feridas na pele.
Secreta antropofagia.
Curo tudo com iodo e futuro (...)

A confraria são os encontros do personagem na cidade. São minicontos em forma de versos. Acho todos os personagens apaixonantes: Ana e Carolina e seu amor desesperado, a doce solidão de Seu Alfredo e as moças dos Correios, a revolução monocórdia de Domênica, os desejos e amores plurais de Maria Alice.

O encontro é uma história de amor vivida pelo personagem. São poemas sobre um grande amor que vivi, registrados quase em sua maioria na hora da partida. São extremamente dolorosos e densos. Lindos na dor que lhes coube dividir comigo.

O SEGUNDO DIA

Alinhavo a roupa esquecida.
A casa deve permanecer em ordem .

O cinema é a porta de entrada do personagem no mundo da arte. Os poemas falam dos filmes que vi, da aversão e excitação que o cinema exerce em mim. Essa paragem é, também, uma extensão de O encontro. Muitos dos poemas falam de um amor de “cenas de ciúmes cinematográficos”.

O deus é a opinião do personagem sobre Deus e seu quintal: a arte como um estado atemporal, acima de tempo e espaço. Essa paragem confirma a minha infinita atração e a minha temporária repulsa por Deus.

A literatura é a paragem de encontro final do personagem. É a estação onde ele desce para ficar. São os poemas em que teço elogios rasgados à palavra, à poesia, à possibilidade de tê-la como caminho e corpo. O livro termina com o poema "Saldo", que, acredito, resume a minha relação com a poesia:

Na construção do pensamento
a presença edificante da dúvida.
Aos 10, chocolate ou café
Aos 15, meninos ou meninas
Aos 20, sexo ou romance
Aos 25, loucura ou tratamento
Aos 30, poesia .

Estrutura gráfica e lançamento

A primeira coisa que falei com a designer Heliana Soneghet Pacheco foi que o livro teria que ter um mapa, onde cada paragem fosse um país, cuja capital fosse o título de um poema. Heliana acertou na mosca. Mas e a capa? Eu sabia que tinha que ter um retrato de cidade, mas com elementos de montanha, da natureza, não sabia muito bem. Sonhava com isso todas as noites.

Até que numa manhã, atendendo a um cliente em seu escritório envidraçado, eu vi a capa sorrindo para mim: a imagem de uma seqüência de montanhas protegendo um grupo de edifícios tímidos e cinzas, na Tijuca (RJ). Fiz um esboço para Heliana que acabou fazendo a pintura definitiva da capa – que é um traço, demarcando o topo da montanha e o acontecimento de uma lua disforme. Depois, Heliana bolou todo o cenário encantado do livro: uma chuva de papéis coloridos na capa e no miolo do livro.

O lançamento foi no dia 17 de outubro de 1992, também no Espaço Cultural Lugar Comum, em Botafogo (RJ), Rio de Janeiro. Foi uma noite linda, com um espetáculo de meu irmão Paulo Corrêa, tendo como convidados os cantores João Pinheiro e Márcia Valery, a quem eu anteriormente havia dirigido em shows.