O VALE DA NOIVA

Não me pergunte em que
tanto difere assim
meu vale do resto do mundo.

Não saberia provar que
enquanto no mundo chove, lá orvalha
enquanto no mundo acontece a manhã, lá clareia
enquanto no mundo a mata cresce, lá florescem.

No resto do mundo os bichos pastam.
No vale, correm.
No resto do mundo a lua tem fases.
No vale, humores.
No resto do mundo asfalto.
No vale poeira.

Para cada história do mundo
duas lendas do vale.
Para cada morte
duas passagens.
Para cada insônia
duas noites numa só.

Meu vale anda quando corre.
Já que me permite o breu
não preciso guardar velas para o escuro:
aproveito e sonho
com o rio e o caminho que fazem as águas.
E com a lenda da noiva
que meia hora antes do casamento
resolveu se banhar já vestida
molhar os pés e as mãos
como bênção e proteção.
Mas acabou não resistindo
e deu-se ao rio inteira.
A água a aceitou.
Hoje é sereia intocada.

Acordo quando o vale desperta.
O resto do mundo não entenderia
se lhes contasse que acredito com fervor
que a história garante:
o noivo se encontra com a amada
vestido e de alianças na mão
toda noite às seis
na beira do rio que pára.

CÉU ABERTO

Admitindo a imensidão
um porre de estrelas.

 

ASAS

O corpo dobrou-lhe as pernas.
Ia-se o menino.
Não mais via os faróis
que fingiam não vê-lo
atropelado e morto.
Da fotografia no jornal
tive medo de que recolhessem
sua alma encolhida
para estudos.

ANA E CAROLINA: METADES

O desenho de Ana
O rosto de Carolina
Carnavais
Fantasias de que mesmo?
Ana sairá distraidamente vestida de Carolina
E Carolina não.
Ana percorrerá os blocos. Rio de Janeiro.
Carolina ficará esperando que volte.
Ana antes de sair toma remédios
para a dor de cabeça vespertina.
Carolina nada cuida de seu doído tornozelo.
Adoecerão em breve no conjugado.
Ana de cistite
Carolina de tanto.
Ana voltará da folia exausta e arrependida
pele tapada de suor e confete
pulseira e aliança nova de serpentina:
cairá em sono profundo de sonho e cerveja.
Boca aberta.
Carolina perdoará
inclusive deixará pronto o café forte
na garrafa térmica da cozinha:
cochilará em sobresslatos, já sabe.
Amanhã como em toda quarta-feira de cinzas
acontecerá o de sempre.
Ana levantará
e quebrará o espelho do banheiro.
Carolina outra vez compreenderá.
Até lá
Ana está morta dormindo
e Carolina velando o seu mistério.

 

REGRAS

Primeiro alertou-me
quanto ao perigo da expressão “para sempre”.
Depois sacralizou: “eu avisei”.
Saiba que nunca mais esquecerei.

POSIÇÕES

A mão veleja, agora, lenta.
Eu tenho um mar
na pele que me toca.

Nada mais me cerca
O cinema é livre.
Assisto à última sessão
agora de dedos entrelaçados
e amor inteiro.
A mão, apresento-me, calma.

A CENA PÁLIDA

Tentava lhe dizer
o tamanho voraz de meu amor
a velocidade maluca de meu amor
a delicadeza bruta de meu amor
o tempo inquebrável de meu amor.
Mas não pude:
a sessão das seis era mais importante.
E se foi.

O CICLO

Deus
metódico
risca os dias passados
em seu calendário vencido.
Sim, envelhecemos.

 

A HERESIA

Cometi o seguinte pecado:
experimentei da alegria plena.
Agora teria castigos a cumprir.
Mas como excomungado
reinvento novas alegrias plenas para viver.
É carnaval.

DESEJO

À mesa
três lápis desafiam a claridade pública
e se tocam.
Ao lado, poemas já cansados.