O CANSADO MARINHEIRO

Todo fim de tarde é assim.
A porta da frente se abre
e ele chega com o mapa das águas nos olhos.
Senta-se o cansado marinheiro
e cumpre o costume de algo para beber
enquanto lê notícias de além-mar.
Passeia por portos e mensagens
sem perceber que mais uma vez
dou corda às suas cidades submersas
para rever a dança de deuses e fantasmas de plânctons.
Essa, a minha estranha conquista.
Depois já é muito tarde
para comigo dividir o verso salvo deste cotidiano naufrágio.
Deita-se o cansado marinheiro
espalhando seu corpo sobre o deserto insone de minhas horas.
Muito, muito tarde, mas nunca tarde demais
para novamente cobrir-lhe os sonhos
e recolher as conchas que acabam de cair
de sua mão adormecida.

 

DELICADEZA

Ainda dorme.
Comigo, à mesa, a sombra
mais bela que suja
mais minha que sua
outra vez presente.
Sirvo-lhe o café e a delicadeza
de uma manhã a mais.

 

DANÇA

Dança com os pés sobre os meus.
Deixa-me conduzir-te pelos salões
a descobrir novos continentes
onde possas atracar.

A vida é esta música, ouve
a enganar os demais com seu silêncio.
Dá-se a nós, e tão-somente
segredo de escutá-la sem repetição.

Valham-nos os descompassos
meros recomeços
da cantiga que se repete
no rádio de toda manhã.

Pousa teus pés sobre os meus, anda
sobremares dançaremos a chuva.

 


LÁGRIMAS E SEIVAS

Na cozinha
prepara o molho
impaciente com suas próprias mãos
a cortarem cebolas em minúsculas sementes.
Na sala
cúmplice calado
choro e floresço.

 

ITINERANTE MARIA DOS BRASILEIROS

Segue, casa em casa, muda procissão
poucos mas abençoados fiéis.
Aceita o trono que lhe dão
estante, cômoda, mesa de jantar.
Ilumina, absoluta mulher de gesso e ouro
ventre de milagres benditos.
Lá está
dona do invisível
rainha do lar
santa, santa, santa
amadrinhando filhos, plantas, bichos
em seus cotidianos e mistérios.
Por uma semana
mãe de cada esperança
esperança de cada pedido.
Quando todos dormem, clareia
a dúvida dos sonhos menos felizes
acolhe o que lhe parece triste
divide a graça do riso contido.
Dama das almas
senhora das redenções
maria, maria, maria
fingindo aprender o que já sabe.
Depois, sinceramente parte
em adeus tranqüilo e sem cortes
glória de saber deixar sem arrependimentos.

Quando chegar em minha porta
pedirei licença para recebê-la com flores.
Minha casa, em breve, seu jardim.

APARTE (IV)

Era uma vez um sol
que se imaginava lua.

Está decifrado o mistério
dos atrasos de todo dia.

 

VIGÍLIA

Seu corpo já voltou
e adormece cansado do mundo
no quarto que parece tão distante.

No sofá da sala
mantenho-me a postos
flutuante ante o abismo da madrugada.

Aqui ficarei
até o seu desejo voltar
pés descalços, sapatos na mão
e um pedido de perdão
enrolado no jornal do dia.

Isso não são horas de chegar
nem de pedir itinerários ou explicações.

Apago o último abajur
e recolho-me sem ler as manchetes.

A sua alma ou a minha
varre a casa em silêncio.

 

INCÓGNITA

No amor verdadeiro
a porta por onde se entra
nunca deve ser a mesma por onde se sai.

Tanto na chegada
Tanto na partida
há de haver singularidade.

O segredo da tranca de onde vim para ti
não será esquecido.
O endereço da casa para onde vou de ti
pode ser a dor de lá querer te encontrar.

 

TENTATIVA

Sob um céu alaranjado de fogo
montado em imensas pernas-de-pau
ele ia mar adentro
sem destino ou medo
a esbarrar na lua
sem olhar pra trás
a derrubar estrelas
sem querer reconhecer
que a face viva
no aquário do horizonte que o engoliu
era a minha.

Há anos tento desenhar
o sentimento de quando ele partiu.

 

 

SOBREVIVENTES

Envelhecemos sem remorsos a cada dia.
Olho o que fomos e honro a nitidez das fotografias.
Reconheço os passos no mapa das considerações
e lembro onde os filhos foram entregues ao tempo.
Plena a verdade de que ficaram os cheiros
curtidos em vinhos que já não se fabricam
guardados nos potes de ouro maciço das lembranças.
Enfrento os velhos ventos do frio
ainda de mãos nos bolsos mas agora livres
a rescreverem letra por letra da história esculpida.
Não faltaram palavras de consolo ou fé
tudo foi dito ou abandonado na hora devida
e os degraus construídos sob as ordens do acaso.
Piso as folhas das árvores que conhecemos:
o barulho de vida pulsante me faz rir com prazer.
Provo a sabedoria de tanto saber o nada de todo dia
e a felicidade suprema de atingir a cor de não morrer.
Somos as chaves do que vinga e não pede vitrine
quer apenas descortinar a próxima curva.
O orgulho de não temer o realizado
O sabor de requentar a esperança
dons que soubemos viver sem prejudicar o andamento do mundo.
Sobreviventes de nossas próprias alegrias e limites
hoje comungamos o mérito da permanência.
Se existisse, o arrependimento daria lugar ao agradecimento.