Comentários do poeta

SINAIS URBANOS: DIÁLOGO AMOROSO DE POESIA E MÚSICA

Eu tinha um sonho antigo e mais secreto que antigo: deixar registrada, de alguma forma, a relação poética que tenho com meu irmão, o cantor e compositor Paulo Corrêa. Apesar de termos poesias bastante diferentes, eu sentia que, em determinados momentos, a minha literatura e a música dele se encontram, ainda que às escondidas, para um café ou para a troca de segredos.

O projeto do CD e do espetáculo de música e poesia Sinais urbanos nasceu sem querer. Quando estava montando o roteiro de meu primeiro recital solo Sete senhas (2002) pedi ao Paulo para compor algumas trilhas. Ficaram tão incrivelmente perfeitas – tocavam o que eu queria dizer – que estendi o pensamento e o convite para que ele participe de dois números comigo. Ele aceitou e foi um encontro muito feliz para mim.

No ano seguinte, quando publiquei o livro Poemas casados (2003), tive a idéia de fazer um pequeno espetáculo conjunto com o Paulo no dia do lançamento. Foi aí que aconteceu, de fato, o desejo de fazer um trabalho maior que culminou com o projeto do CD. Para montar o roteiro, fiz uma viagem bastante particular nos meus livros, à luz das canções que ele demonstrou vontade de cantar e vice-versa. Fui buscar "Trapezista" e "Pedaços I" no meu primeiro livro (Entre dois invernos, 1989), assim como muitos poemas, como "Reflexos" e "Altamaré" no meu mais recente livro da época Poemas casados. A seguir, um dos trechos do CD e do espetáculo (poesias "Contínua" e "Arquibancada" com a canção "O canto"):


CONTÍNUA

A sombra não possui ossos
e ainda assim sustenta
corpos, costumes e convivências.
A sombra não possui rugas
e ainda assim tomba
costas, culpas e curvas.

A sombra descansa no breu
mas nunca dorme
A sombra é o cão que guarda
mas nunca rosna

A sombra não é geométrica verdade
A sombra não é amiga
A sombra não passa em roletas
A sombra não passa de uma memória exilada

A sombra só se veste com o sangue divino
A sombra só se despe em réquiem alheio
A sombra não vale a luz que a mantém
A sombra não vale o chão que pisa.

Eu já não possuo uma sombra.
O que se vê a me seguir nas calçadas
como numa estranha procissão de mudas beatas
é a alma, em seu constante e frenético movimento,
à cata da moldura exata para o nosso auto-retrato no mundo.


O CANTO
(Paulo Corrêa)

Eu canto pros malditos, canto pros benditos
Canto porque eu não sei rir
Eu canto pros estranhos de todos os cantos
E isso é o que me faz ir
(mesmo que não me escutem)
Minha garganta busca a palavra justa
que explique o que eu teimo em ver
O que nasce de nós
sagrado ou profano não importa, nasce de nós
Por que nasce de nós tanta desgraça, será que é da raça?
Por que nasce de nós, tanta desgraça
que vaga e devasta, estamos sós?
Do Planalto Central, sinais de fumaça avisam
que algo cresceu
no que há de humano em nós
os velhos selvagens de peles tão claras
O que há de humano em nós
além da meta de se conseguir ter um carro mais veloz
pra sair correndo das crianças dos faróis?
Onde anda Deus, onde anda Deus?
Busca um milagre por todos os cantos?
Onde anda Deus, onde anda Deus?
Joga videogame com um dos seus santos?
Urbanos samurais com seus bandos bêbados
dominam as ruas
rebentos de Xangai, tupiniquins,
Bruce Lees de almas sujas
Na TV, pedem paz
nos intervalos de imagens tão duras
E os filhos dos lixões
diariamente reciclam essa usura.
Onde anda Deus, onde anda Deus?
Busca um milagre por todos os cantos?
Onde anda Deus, onde anda Deus?
Joga videogame com um dos seus santos?
Há tantos cantos não importam quantos
sagrados, pagãos ou mesmo
os cantos das paredes com seus santos
tristes, tímidos, tementes
e eu insisto perguntando
em qual canto do mundo é que se esconde Deus?
Meu canto às vezes dorme em paz
Às vezes nasce e se refaz no caos.


ARQUIBANCADA


Os sinos e os apitos estão mudos
As alegorias da fé, cegas.
As crianças desfilam
adormecidas e fantasiadas de Deus na calçada.
Até que aplausos secos e rápidos as atingem
e elas percebem sem harmonia ou enredo
os próprios corpos pendurados no cordão de isolamento.
Marionetes crucificados nos meios fios do nada.
O sangue é passarela
O ritmo, câmera lenta e distante.
E a Candelária, alegórico carro estanque, se apaga
para o carnaval de lanças (perfume nenhum)
que a cidade, atravessada, finge brincar.

O casamento das músicas e das canções (todas com letra e música de autoria do Paulo) foi um processo muito natural e contou com a colaboração do cineasta e amigo em comum Luís Alberto Rocha Melo. Depois do trabalho pronto foi que percebi que, mesmo com todas as diferenças que a minha poesia e a do Paulo têm, havia algo muito entrosado, como se tivesse sido feito para que o encontro se desse. Para mim, o CD e o espetáculo Sinais urbanos, título de uma das canções do Paulo, foram a realização de um desejo de fã que tem a oportunidade de estar ao lado do artista que admira.

Em uma das reuniões para a montagem do roteiro final, comentei com o Paulo que tinha acabado de escrever um texto sobre o meu nascimento e a minha relação com a palavra ("Certidão"), com o qual gostaria de abrir o CD e o espetáculo. Para nosso espanto, a coincidência: ele estava finalizando uma canção sobre o mesmo tema, que acabou também sendo batizada de "Certidão".

Tirando a poesia "Certidão", só há outros dois textos inéditos meus "Colagem" e "Bilhete para o amor que se pensava perfeito". Em termos de música, além de "Certidão", nunca haviam sido gravadas "O trapezista" e "O acrobata" (feitas pelo Paulo para o vídeo "O trapezista", vídeo de Luís Alberto Rocha Melo baseado no livro "O diário do trapezista cego"), "Mais uma dor", "O canto", "A canção do poema", "A canção e a hora", "Nenhum detalhe", "Bem-vinda" e "Confesso".


Estrutura gráfica e lançamento


Convidamos o designer Pablo Esdras para fazer o projeto gráfico do CD. Depois de algumas tentativas – período em que dscobrimos ser necessário um subtítulo para o projeto, Itinerário poético-musical dos errantes -, o Paulo lembrou uma série de desenhos em preto e branco criados pelo Pablo para meu recital solo Sete senhas. Na verdade, aquelas ilustrações sintetizavam todo o processo e eram testemunhas oculares do início de tudo: estavam no palco quando eu e Paulo nos apresentamos juntos pela primeira vez. Os desenhos são líricos, inquietantes, extremamente criativos e traduziram de forma bastante poética o que queríamos dizer com Sinais urbanos.

O lançamento do CD e do espetáculo aconteceu no dia 6 de setembro de 2005, no Teatro Café Arena, em Copacabana (RJ), e contou com a participação dos músicos Luís Alberto Rocha Melo, Camila Rosenbrock e Renato Bocão.