Comentários do poeta

O DIÁRIO DO TRAPEZISTA CEGO: A AVENTURA DO VÔO

A criação do livro baseou-se num conto que não entrou na seleção final dos textos: "O início do grande amor", que conta uma ida minha, de meu pai e meu irmão a um circo, na Praça Onze (RJ), na década de 60. Durante o encantado espetáculo, de repente o ciclista deixou o veículo de sua refinada arte cair no chão, diante de uma imensa platéia que se calou. Ninguém sabia o que fazer. Quer dizer, meu pai sabia. No meio do silêncio, enquanto o artista levantava a bicicleta, constrangido, meu pai se levantou e começou a aplaudi-lo com entusiasmo. Todos o acompanharam naquele instante e dali em diante eu o acompanhei, com admiração absoluta, pelo resto da vida.

Por que o texto não entrou no livro? Porque eu só queria que ele fosse uma espécie de bússola. E também porque nunca consegui dar uma redação digna à imensa capacidade de meu pai de amar a vida e de ensinar a mim e a meu irmão, sem nunca ter dito uma palavra a respeito, a amar a arte. O diário do trapezista cego é dedicado a meu pai:

Este diário é dedicado a
Fabio Alves Corrêa
às vezes vendedor, sempre fotógrafo
filho de Maria, pai de Paulo
nosso e de cada dia
às vezes viajante, sempre cintilante
amado, desprezado
santificado esteja;
senhor de luas serenas
mãe disfarçada de mar
às vezes curandeiro, sempre seresteiro
dono do mundo, porto de tantos
meu e pai.

Este diário é para o eu
que há em meu pai
de quem, em seu nome
me reconheço filho:
o coração que o levou
é o mesmo coração que me conduz .

O livro foi dividido em sete capítulos, cujos títulos estão diretamente ligados ao mundo do circo: A última cena, Coxia, Palco, Temporada, Perfeição, Trailer e Trapézio. Muitos dos textos também trazem, propositalmente, expressões ligadas ao circo. Outros, de uma forma ou de outra, à arte. Considero o longo poema inicial "A existência" o meu melhor auto-retrato:

(...) Mas tenho a alma sofisticada nada lhe satisfaz
Até felicidade é um porto tão pequeno
Que não adianta a existência de barco ou mar:
Minha alma inventa a necessidade do céu para descobrir ondas.
É cansativo não ser Deus (...)

Além da referência circo, quando selecionei os poemas tinha a cor terra na cabeça, que acabou sendo utilizada na palavra trapezista do título na capa. Era preciso contrabalançar o sonho de meu pai, de que era possível um dia ser totalmente feliz, com a força de minha realidade, de que às vezes somos visitados por uma felicidade possível, nada mais, e que a essa visita devemos oferecer, ainda que por instantes, a vida.

Durante a gestação do livro, senti a necessidade de traduzi-lo visualmente, vê-lo em movimento. Conversei com o cineasta Luís Alberto Rocha Melo, que conhece a mim e à minha poesia como poucos, e ele topou fazer um vídeo não sobre o livro simplesmente, mas sobre o trapezista que ele conseguia perceber em mim. Criou, lindamente, o vídeo O trapezista, que conta com trilha sonora assinada por meu irmão Paulo Corrêa. Se a minha poesia tiver que ter uma cara, é aquela que o Luís desenhou; se tiver que ter um som, é aquele que o Paulo descobriu.

Estrutura gráfica e lançamento

Meu pai era fotógrafo de nascimento, apesar de ter sido obrigado a abandonar a sua arte muito cedo. Mas, para ele, a fotografia era o que a poesia é para mim: respiração. Como o livro era dedicado a ele, pedià designer Heliana Soneghet Pacheco que criasse um álbum de fotografias, no qual os poemas se sentissem acolhidos e registrados para sempre. Decidimos que não haveria fotos visíveis, mas como meu pai gostaria de registrar a cara de alguns poemas, colocamos cantoneiras nas aberturas dos capítulos. Cantoneiras douradas, claro.

A partir daí Heliana criou, para mim, seu projeto gráfico mais bonito. O livro, horizontal, é reforçado por madeiras laterais, num álbum de fotografias luxuosíssimo. E o motivo da capa ser preta é simples: ela me perguntou qual era a principal sensação de um trapezista cego. Respondi que eram a coragem e a atração de voar no escuro.

O lançamento aconteceu no dia 9 de junho de 1999, nos Arcos da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema (RJ), onde também foi lançado, no mesmo dia, o vídeo do Luís. Acho que meu pai ficou contente.