Comentários do poeta

ENTRE DOIS INVERNOS: O LIVRO DA ENCANTAÇÃO

Um aviso necessário: para entender como o livro nasceu e como foi possível publicá-lo, não deixe de ler Como nasceu o primeiro livro.

O fio condutor de Entre dois invernos são as quatro estações. Começa e termina em invernos e, de forma quase imperceptível, vai se dividindo em capítulos invisíveis demarcados pelas estações. Começo e termino o livro utilizando imagens de bruxa e fada, tentando fazer um contraponto e uma mistura entre bem e mal, amor e desamor, solidão e delicadeza.

Entre dois invernos é um livro de amor a dois, em que as imagens se baseiam também no universo das encantações: além de bruxas apaixonadas, fadas horrorosas, fala muito da relação arte x artista, principalmente com referências ao circo (uma paixão que, em 1999, dez anos depois, escancararia em O diário do trapezista cego. Acho que o poema que sintetiza o livro é "Trapezista":

Cena 1: a pequena plataforma
sustenta meus pés.
Cena 2: expectativa. Grande distância
para alcançar o trapézio.
Mas alguém, em breve, do outro lado,
o lançará em minha direção.
Cena 3: Preparativos para o salto. Um passo à frente.
Vento leve. A coragem para o vôo. Impulso.
Cena 4: Mergulho. Corpo no ar. Pés sem chão.
Minhas mãos se abrem à espera do encontro.
Cena 5: O trapézio não me é jogado.
Instante de angústia. Desequilíbrio na respiração.
Cambalhota desengonçada no espaço.
A elegância do salto espelhando
a deselegância do tombo.
Cena 6: Alguém, por motivos desconhecidos,
manteve o trapézio nas mãos.
Por amadorismo, esqueceu que existe
apenas um único momento-exato
para que tudo saia perfeito.
Por indelicadeza, não me deixou receber
um aplauso que era meu.
Por temer a altura, reteve consigo a salvação.
Cena 7: a rede ameniza a dor.

Para mim, são textos inocentes, profundos, apaixonados, que, embora não tenham um polimento poético, valem pela imensa carga emotiva que carregam:

PEDAÇOS VII
A cidade é imensa demais
para que meus detalhes signifiquem.

São poemas curtos, quase lamento, quase alegria, mas redondos em sua existência. A maioria pertence aos anos de 1986 a 1988, tendo apenas um de 1982 – o ano de publicação foi 1989. Entre dois invernos traz, também, alguns apontamentos sobre poder, família e escrita. Foi meu primeiro e inesquecível livro. Criá-lo me trouxe um prazer que acredito que jamais conseguirei descrever. Ainda hoje, tantos anos depois, o olho com respeito, mesmo sabendo de sua ingenuidade vestida de pretensa maturidade. Porque é um livro corajoso, aberto, com poemas que falam diretamente ao coração das pessoas, emocionado, falsamente despretensioso, assumidamente numa primeira pessoa do singular em que o leitor pode achar que funciona como um disfarce. Não é. Cem por cento eu. Todos aqueles encontros, partidas, expectativas foram experimentados.

E mais: Entre dois invernos, assim como na montagem dos livros posteriores, confirmava a importância que eu dava – e que ainda dou – à seqüência que os poemas devem ter no livro. Na verdade, acho que, mais do que livros, faço roteiros de poesia (nunca escolho os melhores, mas aqueles que se encaixam na idéia central que quero transmitir).

Estrutura gráfica e lançamento

A designer Heliana Soneghet Pacheco, que assina a programação visual de todos os meus livros, criou, com a coordenação editorial da também designer Cecilia Leal, uma linda e encantada caderneta espiralada, comprida, repleta de papéis coloridos pulando para fora, colados, formando desenhos e sonhos, com o nome do livro e o meu nome estampados numa etiqueta na capa. Um projeto gráfico lúdico, encantado, que conto em detalhes no link assinalado no parágrafo inicial.

O lançamento aconteceu no Bar Cochrane, em Botafogo (RJ), em 6 de junho de 1989, dois dias depois do meu aniversário de 29 anos. Do lançamento, lembro de que havia muita gente, da emoção sincera de meus amigos em me verem realizando algo tão importante para mim. Lembro também que Cecilia abriu uma champagne e que Heliana montou uma pequena exposição com poemas espalhados nas paredes do bar e que, quando chegou, entrou espalhando pedaços de papel colorido pelo chão, felicíssima, sem se importar com a cara de espanto da gerente.

Também lembro que a jornalista Mara Lúcia Martins recortou o título do livro impresso no convite e colou na blusa. Enfim, estávamos todos emocionados e realizados, eu sei disso. Foi uma noite linda. Quando cheguei em casa, dormi sozinho, mas pleno, e tive minha última lembrança: imaginei o rosto de meu pai, que havia morrido há quase três anos, sorrindo, feliz por eu ter conseguido.